07.04.2020 Interessa-me particularmente a utopia II
07.04.2020 Interessa-me particularmente alguma utopia II. Hoje chegam-nos bons ventos de Espanha. Tendo a reagir a todos os provérbios populares, até conseguir a habilidade de os rastrear à sua origem, preferencialmente clássica (voltaremos à história da gota de Lucrécio). Quando os ventos de Espanha retiram probabilidades negativas às utopias, não há como não dar permissão à vontade de recalcar a tradição.
Mas a minha questão proverbial com Espanha não é sobre os ventos e as uniões, mas a questão do “ver com as mãos”.
Por defeito-profissional tenho razões (ou falta delas) válidas, que confesso, são apesar de tudo de uma mesquinhez que até me envergonha: após uma visita pascal de um grupo de amigas do país do lado, qualquer cabinet de curiosité se transforma numa thrift shop.
Porém, a minha aversão ao ver-com-as-mãos esbateu-se totalmente quando li a descrição de Hélder Gomes Cancela nas Pessoas do Drama, sobre as galerias dos museus de Roma: “como se o tacto fosse a finalidade do próprio olhar, via-se para poder tocar, tocava-se para verificar a espessura”.
Esta ideia do toque enquanto confirmação do credo (Cancela fala-nos de um olhar que acredita e das mãos que o confirmam) dá sentido a qualquer pretensão de movimento, agora suspenso, pausado. Nestes tempos de peste, apenas com o ecrã, estamos incapacitados de comprovar, de medir, de testar, de avaliar.
Os ventos de Espanha trazem-nos boas notícias sobre a utopia. O Rendimento Básico Incondicional está a ser debatido nas altas cúpulas da decisão espanholas. A acontecer, e dadas as pretensões de extensão para fora do espaço temporal da peste, Espanha pode-se tornar o primeiro país europeu a passar da fase de testes.
A primeira leitura umbilical levar-nos-ia a pensar que, tendo em conta o nosso rotineiro atraso nas cópias internacionais, mais ano menos ano a coisa chegará.
A segunda leitura umbilical, depois do telejornal, leva-nos o regresso do RBI de volta para a utopia, depois de assistirmos ao clamor do messiânico apelo aos bancos à participação primeira nos processos de cura.
Esta “agora é a vez deles nos ajudarem”, súplica transversal ouvida como ruído de fundo, diz tanto da nossa noção de democracia quanto da nossa preguiça.
Regressando aos provérbios, resta-nos afinal não a comum tradição, mas Lucrécio: “a queda da água gota a gota escava a pedra”.
Se o vagar (e não a paragem) é condição conservadora por excelência e a velocidade privilégio basilar dos progressistas, invertamos as qualificações - lutemos então por um conservadorismo apressado.
Ou em alternativa um progresso arrastado, se apenas isso nos sobrar.

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