07.04.2020 Interessa-me particularmente a deriva I


07.04.2020 Interessa-me particularmente a deriva. Pessoa diz-nos que sempre se contentou que os outros se divertissem, “que sejam alegres à maneira deles/ Se o fossem à minha seriam tristes”. A ideia do alheamento à alegria do outro é recorrente neste processo de sobrevivência melancólica.
“Se o fossem à minha seriam tristes” implica o reconhecimento de uma alter-alegria. O eu, inapto à participação, incapaz de incorporar o divertimento alheio como substrato para a sua própria alegria, não nega que não também o pode ser – alegre, ainda que de uma maneira contrária.
Para as questões derivadas da bílis negra recorro sempre a Diogo Seixas Lopes. É bom quando a nossa preguiça encontra consolo em hábeis sínteses, principalmente quando construídas por olhares que, partindo de uma base comum, constroem os filtros interpretativos que devemos usar.
Seixas Lopes explica Durer e a ideia da incompletude, mas desvenda todo um cenário de permanência. O melancólico existe parado, a contemplar “a sua fragilidade humana e finitude intelectual”. Nestes tempos de peste, interessa-me a ideia de “consolo” que a burguesia da época do spleen (original) encontrou na “privacidade das suas salas.”.  
“Gabinetes, boudoirs e salões serviram de arenas para remoer ideias” - quais são hoje estes espaços nos nossos pequenos apertamentos urbanos, despojados de metros-quadrados que alegremente trocámos por hipóteses de viagem e experiência de efemeridade – os que tivemos essa hipótese de troca?
Interessa-me particularmente a deriva em tempos de pausa. Nunca partilhei, como Pessoa, da alegria dos outros, ao invés, criei desprogramadamente o meu próprio projecto hedonista dentro dos limites melancólicos e encontrei na deriva o penso-rápido mais eficaz.
Estando acostumado a circular a minha felicidade na presença, não dos outros, mas da outra – ela - do outro eu, rapidamente tive de encontrar mecanismos de procura de liquidação de prazeres aquando da sua temporária ausência.
E encontrei a deriva-poética.
Nomeada após Guy Debord e Xavier Corberó – o primeiro que me é impossível escapar da brilhante teoria da deriva; o segundo por ter assumido a poética enquanto medida de todas as coisas - a deriva é para mim o passeio despreocupado pela cidade com objectivo único de fazer perder o pensamento.
Esta solitária promenade meditativa tem-me sido duplamente fértil. Se de um lado se coloca a mais primitiva recompensa sensorial, não é menos importante enquanto catalisadora de ideias.
O percurso mais comum pelas mesmas ruas da antiga “nova-centralidade” da Boavista assume-se como não geográfico, pela deliberada supressão de referências, direcções ou objectivos – não apenas permitindo, até incentivando a repetição espacial. É esta a recompensa sensorial, deriva pura, descomprometida. Para as ideias, o prémio é sempre a sua livre-exploração.
Mas se a deriva implicaria à primeira leitura a temática do movimento; sendo este movimento concêntrico e repetível, torna-se estático; e assim concordante com a possível proposta de imobilização melancólica.  
Se entendermos a Paris de Baudelaire como um espaço fechado na sua auto-suficiência simbólica, podemos totalmente despojar o processo melancólico de todo o movimento, ainda que a deriva seja condição visceral.
O descanso de toda esta dúvida encontramos em Montaigne – o que é que não encontramos em Montaigne? - quando este nos evoca um lugar de estranha dicotomia cinética: “Todo o lugar retirado requer um deambulatório. Os meus pensamentos dormem se os assento. O meu espírito não avança se as pernas o não agitam. A todos o que estudam sem livro acontece o mesmo.”
Não me tivesse eu tardiamente deslumbrado com o sieur-do-ensaio, teria nomeado à partida e sem réstia de hesitação a deriva como deambulação. Mas faz tudo parte da minha errática e longa resistência: passei demasiado tempo agarrado à contemporaneidade.
Já não vamos a tempo: Guy Debord chegou primeiro e ainda que apenas o termo, mais que a definição lhe tenha roubado, este ganhou a sua autonomia e possibilidade de metamorfose com uma tal de poética que teima em não aparecer.
Os tempos da peste são curiosos na sua rotação espacial. Aquilo que era espaço de solidão, tornou-se deambulação acompanhada; aquilo que era espaço da partilha (chamo antes, parceria) teve de encontrar uma qualquer metamorfose para se ir adaptando às múltiplas solicitações do dia.
Face às limitações impostas pelo confinamento pela peste, a possibilidade de deriva renomeia-se de ligeiramente desobediente passeio-higiénico. Pela diminuição de vezes que se pode experienciar a rua, faço-o agora acompanhado.
Contrariando as expectativas, a alegria de uma deriva poética acompanhada ganhou um supra-patamar de alegria. Os poucos passeios higiénicos que fiz com ela pelos antigos espaços que percorria sozinho ocuparam agora um lugar de um recompensante entusiasmo sensorial.
Nessa dança de contrários, o confinamento pela peste obrigou a uma procura pelo momento da anterior deriva-poética dentro do espaço do habitar.
“Miserável é, em meu parecer, quem não tem em sua casa onde estar consigo, onde privadamente fazer a corte a si mesmo, onde se esconder” - e eu encontrei-o na escrita, e ao que parece, também na publicação.
Ao contrário de Montaigne que na sua propriedade possuía a sua própria torre com vários pisos temáticos, os espaços dos contemporâneos da nova-peste tornam-se incapazes de fomentar a estratificação familiar. Perderam-se os gabinetes, os boudoirs e os salões. Ganhou-se o open space multifuncional onde cada um pode encontrar o seu espaço apenas numa proposta a-espacial.
Regressando à alegria, à de Pessoa e à dos outros (que parece querer sempre evocar um espaço comum de obrigatória convivência); regressando à eudaimonia grega, a minha procura já há muito terminou: “porque era ela; porque era eu”.
Por a minha pessoal alegria estar tão simplificada na vida quotidiana com ela, esta quarentena está a ser tão fácil de percorrer.

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