10.04.2020 Interessa-me particularmente alguma utopia IV


10.04.2020 Interessa-me particularmente alguma utopia. Queres que te conte como é que se está tudo a passar por aqui? Não é muito diferente do que vivíamos antes da peste. De certa forma é igual, mas, muito melhor. Confuso?
A classe média tem de limpar a sua própria casa. Mas não a classe rica, essa tem apenas de pagar melhor. Ainda há mais ricos e menos ricos. Ciclicamente jovens entre os 18 e o 45 varrem as ruas por sorteio e é divertido. A roupa é feita à mão. O coordenador de máquinas na fábrica trabalha 1 mês e é substituído. Ainda há fabricas. Muitas.
Não é necessário limpar as casas de banho dos shoppings. Estão fechados. Mas não foi por causa do que fizemos, foram as compras online. Só trabalhamos quando queremos viajar, comprar um livro novo ou jantar fora. Só trabalhamos para o excesso, o básico é garantido.
Há concertos grátis, os músicos vêm de fora passar férias e dão concertos. Mas também há concertos caros. Há cinema, uns pagam bilhete para ver, outros vendem bilhetes para ver, outros aspiram os estofos para ver. A maior parte da arquitectura já foi construída. Os trabalhos maus são rotativos e bem pagos. Os bons fazem-se por prazer. A máquina faz o resto.
O sonho do Oscar Wilde cumpriu-se. E imagina! dentro do Capitalismo.
Aprendemos muito com o COVID-19 na altura. Já ninguém queria sair de casa – era bom.
Os professores experientes reformaram-se. Todos nos tornámos professores – gostamos tanto de influenciar. Ninguém se aborrece nos trabalhos.
Em 2020 aprendemos a distribuir a riqueza. Afinal o dinheiro chegava para todos. Essa foi a nossa grande vitória.
Explicar às pessoas que o dinheiro dava para todos foi tão difícil como demonstrar que deus nunca existiu. Não conseguimos justificar nem um nem outro.
Mudámos a táctica e usámos a fé.
Ainda há capitalistas. Precisamos tanto dos impostos deles.
Mas nunca obrigamos ninguém a contribuir, nem a trabalhar.
Bebemos muito chá e sumos de fruta porque os refrigerantes acabaram por desaparecer. É fantástico o mês das vindimas, mas é tão difícil conseguir vaga para trabalhar – sim ainda lhe chamamos trabalho. Manteve-se o termo para demonstrar que evoluímos.
Houve um ano que quis ir ao Japão. Não ganho dinheiro suficiente como escritor e curador de design. Soube de uma vaga na construção de comboios. A máquina fez quase tudo, mas mão gostei. Foram três meses muito entediantes porque li menos, mas consegui pagar a viagem.
Os trabalhos maus são breves, já ninguém precisa de passar uma vida de sofrimento laboral.
O velhinho Bezos ainda é o tipo mais rico do mundo. O Turismo espacial dá dinheiro e todos adoram ciclicamente andar de bandeja na mão a servir a fantasia aristocrática do viajante. A amazon é que se foi. Ninguém queria trabalhar lá, pagava mal. Os robots foram resolvendo durante algum tempo Tinham aqueles camiões cheios de drones que entregavam pela janela. Mas deixámos de querer. Gostamos dos livreiros, têm tanto para ensinar.
O que eu tinha mais receio era ter de ir cuidar dos velhos – ainda custa tanto lidar com a morte. Mas há tantos de nós que têm a vocação de cuidar. A solidariedade, que agora chamamos cooperação, foi uma das grandes lições de tudo isto.
Quando vem a peste temos e ficar em casa durante algum tempo. Enfim, já nos habituámos. Não vemos os nossos pais durante alguns meses. Aprendemos a viver assim em 2020. Eu ainda sou saudável. Nessas alturas o mercado não pode funcionar tão bem. Recebo a carta e vou contribuir. Por vezes não quero. Posso recusar 10 vezes por ano e nem sequer preciso de apresentar motivo. Todos recusamos, todos aceitamos. Acho que nunca ninguém chegou a gastar as suas 10 vezes. Toda a gente encontra sempre algo que gosta mais de fazer.
Ainda há criminosos e prisões. Ainda há fugas ao fisco, mas menos. Ainda há violência doméstica e crimes passionais. Quando há liberdade, temos o risco de permitir que o ser humano se experiencie na sua plenitude. No bom e no mau.
Singapura sempre implantou o chip. Sim, foram mesmo os cidadãos que o pediram.
O meu quotidiano não difere muito de 2021 quando nos permitimos mudar de vida. As lojas continuaram a existir. Tínhamos tanto tempo livre para andar na rua a consumir que o espaço público ganhou um novo fulgor. Já que passávamos metade do ano em casa a protegermo-nos da peste, no resto do tempo a rua torou-se o nosso espaço de desejo.
Das cidades, desapareceram os escritórios. O mais engraçado de tudo isto foi o espanto de tanta gente que não queria perceber a inutilidade da sua ocupação. Os que antes se vangloriavam que não tinham tempo para nada, que o seu trabalho era tão importante que nem se permitiam uma noite de sono descansado, viram-se agora despidos do seu propósito.
Esses tiveram de se reinventar. Para nós, os artistas, os criativos, os sonhadores, os leitores e os ociosos foi… ficámos simplesmente boquiabertos com a alegria da mudança. Finalmente podíamos ser nós mesmo.
E para os pobres, que tinham jornadas de trabalho duríssimas, que se sujeitavam à maior perfeita escravatura para comerem, pagarem um quarto e a conta da internet. E para os desempregados, para os fora-do-sistema, para os arrumadores de carros, para os pequenos vendedores ambulantes. Para esses, foi inimaginável o salto qualitativo. Nem nós que o idealizávamos em 2020 tivemos a capacidade de perceber as transformações humanas que conseguimos com tudo isto.
Mas falava há pouco do meu dia-a-dia que afinal não tinha mudado assim tanto. Continuo a trabalhar com criativos, meio ano na loja física, meio ano na online. Para o mês que vem vou ajudar um amigo arquitecto a construir uma moradia. Nós, os arquitectos, também tivemos de nos reinventar. Há pouca gente a querer trabalhar na construção e nós organizamo-nos e construímos as obras uns dos outros. Bem, temos sempre o mestre que coordena tudo. Temos os robots, mas é interessante. As pontes continuam-se a construir, e as escolas e as redes de esgotos. O público paga bem.
Não lhe chamamos trabalho quando é no público, é serviço, é o comum - fazemo-lo dedicadamente.
Agora escrevo mais sobre arte e arquitectura, mas continuo a dedicar a maior parte dos meus ensaios aos contrastes sociais e ao trabalho. Há tantas desigualdades nas cidades que em 2020 não aceitaram o Rendimento Básico Incondicional. Continuam a explorar os asiáticos.
A América do Sul foi fantástica em 2023. Aqueles activistas da nova geração foram geniais a convencer desde baixo. Foi tão fácil seduzir os quem nada tinham de que este era o caminho certo. Lá tiveram de engolir o sapo do clericalismo e aceitaram a ajuda da Igreja. Irónico. Quem diria que a Igreja ia ajudar. Claro que quando o Tolentino foi eleito ajudou muito.
A poesia ajuda sempre.
Conseguimos criar os tais cenários de desejo.
Já que falamos de ironia, numa primeira fase não foi menos útil convencer os jogadores de futebol a distribuírem. Quem é que adivinhava que isto ia começar pelo futebol.
Nunca acabámos com o trabalho, pelo contrário, só dividimos um pouco melhor a riqueza, acabámos com a pobreza extrema, educamos as populações, mudámos as experiências de trabalho para dinâmicas temporárias e rotativas.
Não mudámos assim tanto.
Afinal eu é que estava errado. Isto até foi só um pequeno plugin que indexamos ao tal capitalismo que nunca quisemos abandonar.


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