16.04.2020 Interessa-me particularmente o ensaio e o diálogo II (e a estante, e a mesa)
“-Quem é o
maior arquitecto de todos os tempos?
-Deus
-E o melhor
arquitecto humano?
-e Deus não é
Humano?
-E sem ser
Deus?
-não precisa
de existir um segundo lugar
-Já foi
segundo lugar?
-também já
fui último
-Em que?
-ui….
-Então acha
que Deus é o grande arquitecto do universo?
-mas não sou
maçónico
-Porquê?
-porque não
sou tolerante, nem acho que a liberdade é o princípio do mundo
-Nem eles.
Mas qual é o princípio do mundo?
-a morte
-A morte é um
princípio?
-um fim é
que não é
-Vai
explicar?
-vamos morrer
-E daí um princípio?
-e daí que
Deus não nos deu só a vida, deu-nos também a morte
-E a morte é
alguma vida?
-também pode
ser
-Mas tem medo
da morte?
-que me pelo
-E da vida?
-tanto quanto
da morte
…”
Este fragmento do virar do século, intitulado (entrevista),
ilustra em resumo as preocupações iniciáticas de um jovem autor. Deus, que podemos
assumir grafado com letra minúscula, era um recorrente interlocutor privilegiado
dos seus diálogos – não fossem todos os diálogos com deus, monólogos –
formalizados em forma de entrevista, enquanto chamada, apelo para a conversa /
porque a entrevista implica que o entrevistado deve ter algum interesse
particular.
Mas não nos oferece este texto pouco mais que forma e evocação
conceptual de uma metafísica bem-comportada: a vida, a morte e o igual receio
de ambas; a maçonaria enquanto possibilidade de caminho no seu axioma francês:
liberdade, igualdade, fraternidade; a arquitectura enquanto proposta de disciplina
de caminho transcendental.
Há, no entanto, uma outra ideia que chega até nós com maior
actualidade que as demais, face ao extremo fulgor meritocrático que assistimos /
e queremos combater: a posição.
O autor que coloca o seu deus em primeiro lugar – ele próprio? -
evita-se ao confronto da vice-posição, questionando-a e enfatizando os lugares
inferiores como patamares análogos.
Este mesmo autor, agora em parceria, escreveu recentemente a
pedido - e a propósito de uma (agora) real entrevista - um conselho para quem
começava. Uma certa “mistura de arrogância intelectual e criativa com
ingenuidade é uma boa forma de manter um bom projecto relevante durante algum
tempo”.
Esta proposta de, digamos, gatilho para começar, remete-nos para três
níveis de análise.
1. A arrogância, segundo este, é matéria indispensável à auto-estima.
Se é criativa ou intelectual, dependerá não apenas do destino a
dar à dita arrogância, mas do grau. Admitimos melhor um vaidoso criativo do que
um soberbo intelectual.
2. Quanto à ingenuidade. Aquele que se acha bom, apenas movido de
algum conceito naif se pode considerar bom o suficiente por comparação. Só uma
certa inocência programada permite alavancar o patamar. Todos somos melhores
que alguns e piores que muitos. Para melhorar – no reconhecimento da
impossibilidade de uma justa igualdade - cabe-nos pensar que é permitido superar
os simétricos.
3. Como refere o autor, tudo isto se permite “durante algum tempo”,
após o qual, ou a qualidade se solidificou, ou os meros estímulos anteriores revelam
os errados e nocivos propósitos da falhada tentativa de elevação.
Tal como na história da mulher de César (mas agora em inversão), após
algum tempo, não basta parecer-se bom, há que sê-lo também.
Dito isto, desenhei uma estante. Ficou bonita, mas teve o infortúnio
de alinhar horizontalmente os mestres que outrora se empilhavam, em espera, num
canto.
Até agora, depois de os procurar voluntariamente, pousava-os no
mármore à espera de ser brindado por algum processo osmótico.
Hoje, eles encontram-me e confrontam-me quando desprevenido,
alertando-me para o meu lugar na prateleira de baixo: dos proscritos e
transitórios, das fotocópias, dos rascunhos, das anotações e dos sublinhados –
não fossem todos estes os mais particularmente interessantes.
Voltando a Adorno, hoje sem a companhia de Montaigne, independentemente
do lugar que ocupamos / face ao que queremos ocupar, o ensaísta, em vez de
desejar “alcançar algo cientificamente ou criar artisticamente alguma coisa,
seus esforços” devem espelhar “a disponibilidade de quem, como uma criança, não
tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram”.
Faltou-me a falta de vergonha. Faltou-me, por estes dias, alguma
arrogância intelectual e toda a ingenuidade que me possibilitaria a desejada supressão
hierárquica.
Senti-me na prateleira de baixo dos mestres, incapaz do convívio despreocupado
que experienciava nos dias anteriores.
Mas já me recompus: é que para além de uma estante, também
desenhei uma mesa, e todos sabemos o interesse particular de uma boa mesa para
um bom trabalho.
Walter Benjamin, na Rua de Sentido Único incita o
proto-autor a nunca parar “de escrever por mais nada te ocorrer. É um
mandamento de honra literária, que só se interrompa quando uma hora marcada”.
Mas o ponto seguinte é ainda mais esclarecedor: “preenche a falha de inspiração
com a passagem a limpo do que já foi escrito. Com isto, a intuição acordará”. –
acabei de o fazer, vejamos amanha se Benjamin tem razão.
Continuaremos,
mas em diálogo.

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