22.04.2020 Interessa-me particularmente o ensaio e o diálogo IV


- Então é em diálogo? Que orgulho pá, fiz-te sair da toca.
- muda aí a toca por algo mais prosaico.
- Caverna faz algum sentido? Torre, como o Montaigne?
- fica torre.
- Como é que eu te dizia, logo nos primeiros: “Interessa-me particularmente a generalidade, estamos a precisar de convocar novamente os generalistas, mesmo aqueles, e principalmente aqueles que, por simples habituação apenas buscam, como Montaigne, senão passar despercebidos.”
- conseguiste, saí. Mas vou voltar a entrar. Passar despercebido. A gaveta é o meu lugar.
- E andamos nisto, há anos, quase 20 não é? Os temas são sempre os mesmos. Andamos a mastigar a mesma merda há 20 anos, sem sair do sítio. Um loop temporal, era o esse o teu objectivo? Mostrares-me a centrifugação do tempo. Mas então o diálogo? vou contornar. É um método pessoal andar à volta do que sugeres. Evitar.
- é o teu registo. Não és um ensaísta, és um dialoguista.
- Parece que estás mais interessado no diálogo que eu. Já há quase 20 anos que dizias que eu era só forma, mas na realidade o que tu gostavas era do meu conteúdo. A forma não era nada. Era o diálogo, era o monólogo, era masturbação com palavras – aquilo não era forma. Interessa-me particularmente o ensaio e o diálogo, enquanto caminho para outra coisa qualquer: o estilo; ali um ecletismo qualquer estilístico, composto de fragmentos.
- por isso é que te fui buscar o Gonçalo M. Tavares.
- E eu agora, há cinco minutos - porque depois há esta coisa de estarmos a falar sobre esta merda há cinco minutos e depois aparece um texto num blog e outro naquela coisa das redes-sociais e isto é uma promiscuidade público-privada, real-ficcional que, enfim, havemos de encontrar uma saída – falava-te do Godard, do Le Livre de Images e dos fragmentos, que era algo que me interessou há tempos e que se calhar me interessa agora mais. Mas olha, ofereço-te o prazer do epíteto. Quando disseste que era eu o dialoguista eu não o procuro, já tu?
- gavetas, é o que me interessa mais.
- Eu preciso de mostrar. Mas não em diálogo. Interessa-me, claro. Tenho alguma apetência, mas, prefiro alguma densidade nas frases. Complexas, a roçar o incompreensível - a coisa da uma certa glória em não ser compreendido. Outro dia estava com o Walter Benjamin e a Susan Sontag dizia que as suas frases “não comunicam umas com a outras. Cada frase está escrita como se fosse a primeira ou a última… Era como se cada frase tivesse de dizer tudo.” Interessa-me particularmente explorar isto.
- hoje não estas a conseguir. E deixa-me desiludir-te. Ainda não conseguiste.
- Pois. O “ainda” dá alguma esperança. Mas adiante, ainda não fui ler o Judt. Não tive tempo, foi ontem, mas nem que tivesse não o ia ler. Ia dar uma volta às referências conexas que conseguisse encontrar, tipo a volta que dei ao Séneca só para não dar o braço a torcer e depois andava aí com o Epicuro na mão, a louvar a Carta a Meneceu como se aquilo fosse muito diferente do Lúcio. Contudo, o Judt só o fui buscar, juntamente com a questão judaica para fazer uma ponte. O Miguel Esteves Cardoso e o Pedro Paixão andavam à procura de umas noivas judias, apaixonaram-se e queriam converter-se. O Pedro eu sei que sim, o Miguel não tenho bem a certeza. Mas depois chatearam-se, enfim. Era só para continuar a ponte. Sabes o que nos falta?  Fazermos um jornal. Pode ser um jornal conservador, se quiseres. Tu conservas (d)o passado, eu conservo o futuro.
- soa bem, mas para que é esse (d)o?
- Tenho medo de o ter ido copiar a alguém, é uma ideia bonita, alguém no futuro já a deve ter dito.
- Tu tens muito medo das palavras. É curioso para alguém que escreve tanto.
- Mas o “do” faz mais sentido, porque é um conservadorismo ainda mais selectivo, um roubo, uma usurpação fragmental para uma utopia qualquer. Só é pena que esse jornal precisava de mais gente: do tipo com ambições políticas, de um lobista, de um gajo com capital, um board, uma secretária para nos chegar o whisky, uma coisa assim bem cliché dos finais do século passado, que também já era cliché dos finais do anterior e assim sucessivamente até chegarmos a um diálogo qualquer debaixo de uma stoa.
- não sou masoquista, não vou fazer um jornal contigo.
- Pois, estamos velhos, aos 35 ainda andamos aqui a perceber qual é o caminho certo. A verdade e a virtude. Os outros já têm tantas certezas. É tão bom não ter nenhuma certeza. Duvidar de tudo. Entusiasmarmo-nos com os mestres.
- também não sei se o caminho é o jardim ou a stoa.
- Mas olha, o Pedro está enfiado em casa há anos com a mulher, e o jardim, e o cão, e o piano. Bipolar, deve escrever só para a gaveta, como tu.
- eu nunca li Pedro Paixão, esse é o teu.
- O Miguel está pouco melhor. Sai mais, mas só para o restaurante. Tinha mais talento. Eu gosto mais dele agora. É mais feliz. A Sílvia já não consegue ler aquilo. Eu acordo sempre cinco minutos antes da Sílvia e vou ler aquilo. O Miguel Esteves Cardoso é a minha oração matinal. Qual é a tua?
-quantas pessoas é que o entendem?
- Acho que tu entendes. Eu ainda não. Só na parte dele viver para a Maria João, essa percebo tão bem.

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