23.04.2020 Interessa-me particularmente as contradições I


- o objectivo aqui é jogar no teu campeonato.
- Se o fizermos à tua maneira não saíamos da pré-época. Mas parece-me que nada daquilo que discutimos interessa realmente. A ninguém. A nós interessa, claro! Mas importa aqui perceber a oportunidade de termos finalmente tornado isto público. Se é para ser púbico devíamos falar era da peste e daquela perspectiva que não passa nos telejornais. De como andamos enganados com esta quarentena mas somos incapazes de admitir o erro. De como isto é tão útil para encobrir a única estabilidade que o capitalismo conhece: as crises. Do medo.
- eu já começo a não ter grandes dúvidas.
- Já começam algumas vozes, devagarinho, a ter tempo-de-antena. Não precisam de nós. Mas devíamos era fazer esse activismo. Eu até já andava aí pelas utopias, pelo rendimento básico incondicional.
- não te disse já que não conheço ninguém que me queira publicar. Nem a ti.
-  Isso tem que se provocar, não é? E logo nós que temos esta extrema habilidade para o jogo social. Enfim, vamos mas é continuar a interessar-nos pelo que já não interessa. Por estes dias andamos nos sistemas políticos. Essas coisas do século passado. Há tanta certeza no modelo actual, que já não se discute mais nada. Quem é que quer ainda se interessa por “ismos”? Detesto aspas, mas nas redes-socias não há itálicos. Vou fazer aqui uma inflexão na marcha e introduzir um outro “ismo” a discutir para a nossa eternidade.
- mas parecia que finalmente me estavas a dar ouvidos. Agora que sentia aí a mínima disponibilidade para explorarmos esta minha contradição.
- Mas é precisamente por causa das contradições. O “ismo” de hoje vem do Roger Scruton, o MEC apresentou-mo assim - ora vê lá o meu encantamento: “Scruton era um intelectual e um académico que adorava música, vinho, jornais, arquitectura, arte, estética, filosofia política e, como se depreende desta lista, a vida em geral. Cometia também o pecado de ser feliz, de escrever romances e crónicas, de caçar raposas e de não ser o aristocrata que parecia ser, apesar da pena que tinha de não ter sido.
- concordarás que temos de tirar, no mínimo, a história da raposa. E já devias saber, nesta altura – vá lá, aos 35 - que esse teu apelo estético te tem levado por muito maus caminhos.
- Espera! isto foi só porque me interessou aí um princípio de definição de conservadorismo que exploravas há uns dias.
- eu sou profundamente conservador. Isto que defendo – chama-lhe o “ismo” que entenderes - é precisamente para conservar coisas que podemos definir como "humanidade", dum caminho que entendo que é desumanizante, cada vez mais. Nesse sentido sim sou. Dou-te o benefício da dúvida estética, avança:
- A história da raposa é especialmente perigosa, mas já la vamos. Interessa-me agora particularmente isto por causa das contradições. Mas para nos poupar a várias linhas de diálogo, deixa-me dizer que o Scruton recebeu a Ordem de Mérito do nosso, para já único, diktátor de serviço na EU, pelo seu activismo na critica ao global e unificante e mais uma ou outra caçada aos imigrantes.
- duas bestas.
- Basicamente. O que é que estavas à espera de tipos que tiram prazer do stalking à raposa?
- Andas a fazer apelos à utopia e ao progresso. Incitas uma qualquer forma de activismo democrático e agora apanho-te nos maus caminhos.
 - É a estética. Não há volta a dar. “Tem de ser bonito. Se funcionar tanto melhor”. Mas este Scruton também percebia muito pouco de arte; e de arquitectura quase nada. Parava no Duchamp, na charneira. Há uma perspectiva do mundo antes e depois do Duchamp. Acho que foi das primeiras coisas que a Sílvia me ensinou na arte. Isso e mandou-me ler a introdução do “Transcrição. Ciclopes, Mutantes, Apocalípticos” do Bernardo Pinto de Almeida. Mas o Scruton não percebeu que a arte não serve para procurar a beleza. Pode conte-la. Pode procurá-la também. Não a pode ter como exclusividade. Não percebeu o papel da arte enquanto visão, perspectiva, comentário, nem sequer como procura individual. Mas depois há o Bach e tudo parece que quer mudar.
- estás a divagar. Não querias falar sobre a minha contradição no anarquismo?
- E não podemos falar da minha? É que a minha utopia é não revolucionária. A minha utopia é reformista. Mas não se fazem utopias a subir escadas, vai-se de elevador. Não te pões a caminho, um pé de cada vez. Ficas cá em baixo, no rés-do-chão (em pré-época) à espera que o elevador chegue.
- mas eu nem sequer chamei o elevador.
- Esse é um problema que estás a resolver não estás?
- estou?
- Nessa procura não revolucionária, encontrei algumas respostas conservadoras e assustei-me. E cheguei provavelmente à mesma contradição que tu, ainda que tenhamos partido de polos opostos.
- esta dará muitas linhas de diálogo. Felizmente não interessa a ninguém.  Já tens conta no Netflix?
- Não. Mas também não vou à missa, não é parecido? Uma série - um rosário?
- é, perder o tempo, a tua coisa mais preciosa em blocos de quarenta minutos
- Ah, mas já me lembrei porque é que fui ao Scruton. Eu andava intrigado – e ando – com aquela ideia teológica que aprendi com o Tolentino, da pergunta. O Scruton dizia que não lhe importava se não tinha claridade na resposta, desde que a tivesse na pergunta. Que no final era isso que importa, a pergunta. Construir uma boa pergunta e esperar que as respostas possam ser individuais.
- como era aquela pergunta que fazíamos na faculdade? Que só percebíamos o que era a arquitectura quando compreendêssemos porque é que o Mies desenhava daquela forma e depois vivia numa sala barroca com janelas verticais forrada a estantes com livros e quadros e se sentava numa poltrona aconchegante confortável.
- Já sabes a resposta?
- não, mas também já não sou arquitecto. A peste destruiu a minha oportunidade.
- Há mais maneiras de ser arquitecto.
- como, a escrever?
- A pensar.

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