25.04.2020 Interessa-me particularmente a liberdade II


I
Interessa-me particularmente a liberdade. “Senhores, em nome da liberdade, sinto necessidade de transferir para a acção os princípios em que acredito, não sentis vós também?”. É uma frase retirada de uma BD que tenho aqui por casa. Um (ainda só) académico discursava perante um grupo uniforme em pano de fundo (e uma mulher em primeiro plano - há sempre uma mulher em primeiro plano). Interessa-me particularmente a liberdade. Interessa-me particularmente os (meus) princípios. Interessa-me particularmente – cada vez mais - a acção (um tipo específico de acção). E a vós?
II
E a vós? Interessa-vos a acção? Interessa-vos a liberdade? Hoje é dia da liberdade. A televisão fala-nos de coisas da boca. Gritos “viva a liberdade”. Canções “Grândola”. Fome. Mudez. Cada um conta a história do 25 de Abril à sua maneira. Gosto do 25 de Abril. O Capitães de Abril da Maria de Medeiros está para o 25 de Abril como o Sozinho em Casa está para o Natal. Sempre gostei do Gervásio, a personagem do Joaquim de Almeida. Não sei se existiu. Googlei e fiquei na mesma. Eu teria transformado o Gervásio apenas na consciência do Maia. O tipo que não acreditava na ideologia da revolução, mas lá acaba por acompanhar a “cambada de provincianos” a entrar em Lisboa sem mapa. Cético. Snob. Conhecia o fim desde o início. Devia ter lido uns livros de história acompanhada de alguma intuição. Acabou a liderar as tropas depois de um golpe em que não participou. Marcello diz lá para o final (o Marcello aparece sempre no final, no filme e na história da outra senhora): “São novos demais para serem comprados” – eu também já não vou para novo.
III
A peste tem-nos revelado um especial acentuar da dicotomia nós / eles e uma particular renuncia à acção não comandada.  O indivíduo tem-se mostrado um afinado pedinte de autoridade. A maioria do medo. A nós, que não somos especialistas, encaminhem-nos, curem-nos, salvem-nos! (do medo).
IV
Hoje o problema das liberdades é o mesmo. Dantes eram as armas. Agora são os telemóveis. As armas na mão certa fazem revoluções. Os telemóveis na mão certa também. Dizem-nos que não precisamos de ter medo da China, que não terá aliados. Não precisa. Só de Clientes.
V
Gosto de pensar que esta peste não deixa ninguém na solidão. Em todas as casas há um algoritmo com quem comunicar. Ele lê-nos. Ouve-nos. Entrega-nos ao Poder à primeira hesitação. Ele conhece todos os nossos livros. Todas as nossas pesquisas no wikipedia. Todos as nossas actrizes porno preferidas. O Otelo Saraiva de Carvalho fez um vídeo porno-erótico com a Julie Sargent nos anos 2000. Chama-se uma revolução falhada. Encontra-se online, como tudo o que precisamos. O Otelo talvez tenha conseguido esconder da mulher que se deixou seduzir pela Julie Sargent. Mas o algoritmo vai saber que tu viste.
VI
Diz o Platão ou o Sócrates - nunca sei - na Republica: Se aparecesse uma cidade de homens bons, é provável que nela se lutasse para escapar ao poder, como agora se luta para o obter.” O poder para os Gregos era a Democracia. O que é hoje o poder? Se ainda for a democracia o filósofo continua a ter razão. Se não é, não tem razão. Somos todos o Gervásio do filme. Velhos o suficiente para sermos comprados.
VII
Diz o Pessoa no Banqueiro Anarquista: “Ora, a acção é sempre mais proveitosa que a propaganda, excepto para os indivíduos cujo feitio os indica essencialmente como propagandistas – os grandes oradores, capazes de electrizar multidões e arrastá-las atrás de si, ou os grandes escritores, capazes de fascinar e convencer com os seus livros.” Gostava de ser “propagandista”. Se escreveres Otelo Saraiva de Carvalho no Google aparece “Estrategista”. Absolutamente fabuloso. Olá, o que fazes? Sou “estrategista”. Não preferes ser estratega? Não, estrategista. E propagandista.
VIII
Que o ditador fale ao povo e se confundam de tal forma que o povo se sinta ditador e que o ditador se sinta povo”, disse Salazar, o ditador, que também disse a primeira citação deste ensaio. Viva a liberdade! Theodoro Adorno, já posso chamar a isto: ensaio?


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