27.04.2020 Interessa-me particularmente as lentes.


I
Em tempos da peste não se pode dizer “perspicaz”. Em tempos da peste não se pode ser perspicaz. Deitam-se muitas partículas pela boca ao dizer perspicaz. É perigoso, porque é contagioso. Deitam-se muitas ideias pela boca ao ser-se perspicaz. Mas é menos perigoso, porque é menos contagioso. “Aquele que tem agudez de vista; que vê bem”. Eu vejo bastante mal. Sou míope. Tenho lentes muito grossas. Quanto maiores são as lentes melhor vejo. Mais perspicaz fico. Tenho ali uma estante cheia de lentes. Na televisão também há muitas lentes, nos jornais, nos púlpitos. Tenho de comprar mais lentes para a minha estante. Há lentes virtuais muito interessantes. Mas as que se colocam nas estantes são de melhor qualidade. Interessam-me particularmente as lentes.
II
 Apanhar bocados de filmes a meio da noite é um prazer acidental, uma sorte, das poucas sortes que não se podem realmente procurar. “Traz-me recibos”. No Munich de 2005 do Spielberg, Avner foi ultimado que teria de trazer recibos dos seus assassinatos. Não estava em causa o valor gasto com cada óbito. Nem sequer a sua relação proporcional ao factor mediático. Tinha apenas de mostrar os gastos. Ostentar despesa. Consumir para matar. Consumir.
III
Traz-me recibos”. No mundo ocidental podíamos apresentar os recibos do que comprávamos com o dinheiro que nos davam (dávamos a nós mesmos) do rendimento básico incondicional.
- Não é só dar, é preciso que contribuam para a sociedade!
- Consumir é contribuir. A melhor contribuição social possível.
- E ajudar! Solidariedade!
- Não, é consumir. Desde que apresentemos os recibos.
Dois mil euros por cabeça, o que dá cerca de setecentos e cinquenta mil milhões por mês na Europa. No resto do ocidente é fazer as contas.  Se os franceses ganhassem dois mil e quinhentos, em Portugal ganhávamos mil e quinhentos e na Hungria? Sei pouco sobre a Hungria. Tenho de comprar uma lente húngara. No mês seguinte, mais setecentos e cinquenta mil milhões e assim sucessivamente até já não termos de questionar que em tempos da peste, ainda falávamos de uma coisa chamada inflação. Não podes passar dos dois por cento! Estás louco! Os dois mil são o novo zero!
IV
Por estes dias todos voltaram a dizer: É “a economia estúpido”. Googlei. Interessa-me particularmente mudar os contextos. “Change vs more of the same”. “The economy, stupid”. “Don´t Forget health care”. É interessante pegar nos slogans do Clinton e usá-los hoje. Continuam a ser as nossas prioridades. Gosto particularmente do slogan da mudança versus mais do mesmo. Interessa-me particularmente conservar versus progredir. Progredir conservando. Conservar o progresso.
V
Ainda no Munich, interessa-me particularmente, a personagem interpretada pelo Ciarán Hinds – que nome fabuloso, quem é que tem este nome e depois lhe fazem uma personna chamada Carl?. “E tu, o que fazes? Eu preocupo-me.” Era este o papel de Carl. Não era matar. Nem sequer construir as bombas. Preocupar-se. “E tu, o que fazes? Eu preocupo-me.” Que profissão fantástica, a preocupação. Que sorte não precisar de a ter. E tu, o que fazes? Penso. E tu? Ajudo-te a pensar.
VI
O “helicóptero do dinheiro”. Ainda se fala dele por estes dias? Não, agora vamos abrir a economia, estúpido. Vai tudo ficar bem. Vai tudo voltar ao normal. Mas de máscara. Não te esqueças dos cuidados de saúde. A economia vai ficar mascarada. De que? Vai ser Carnaval na economia. O festum fatuorum da economia. De que se vai mascarar a economia? Economia normal. “Durante quatro dias, o mundo ficava voltado de cabeça para baixo: membros do clero jogavam aos dados em cima do altar, zurravam como burros em vez de dizerem Ámen, envolviam-se em concursos de bebida nas naves da igreja, cantavam Avé Maria em arrotos e davam sermões falsos baseadas em paródias aos evangelhos. Depois de beberem canecas de cerveja, viravam os livros sagrados de pernas para o ar, rezavam a vegetais e urinavam das torres dos sinos. Casavam-se com burros, amarravam pénis de lã gigantes às túnicas e tentavam fazer sexo com qualquer pessoa de qualquer género que os aceitasse”, escrevia o Alain de Botton no Religião para Ateus sobre o carnaval medieval.
VII
Que máscara vai usar a economia neste carnaval? A máscara da salvação?
VIII
Há um casal de anarquistas no Munich. Vivem numa sala lúgubre, neo-barroca de pé direito alto em Roma. “Devemos ver o certo e errado como questões éticas?”. Também há um poster do Baader-Meinhof, podem não ser anarquistas. “A anarquia cega do capitalismo”. Também há um poster do Lenin, podem não ser anarquistas. “Não lês muito, pois não? Não tenho tempo”. Também há um poster do Nietzsche, devem ser anarquistas. Ou capitalistas, não sei. Alguma coisa pelo meio como eu. A Yvonne fala de filosofia na primeira-parte da conversa. Na segunda-parte fala de dinheiro. Há vinho. Mas o que me interessa particularmente é aquele enorme lustre pousado no chão.

Comentários

Postagens mais visitadas