28.04.2020 Interessa-me particularmente a eudaimonia I


I
Tenho algumas coisas começadas. Esta não é antiga. O texto, digo. Já o tema, nem é antigo, é intemporal. É do dia dezasseis deste mês. Ponho aspas? Não, porque ainda não publiquei. Interessa-me particularmente a eudaimonia, que é como quem diz quando quer vender livros, a felicidade. Quem quer demonstrar arrogância intelectual diz à maneira grega.  Mas não se diz à grega apenas por arrogância, mas porque os gregos ainda acreditavam na sua procura - nós é que já não. Era uma longa empreitada: ir ao “A Vida Feliz” do Séneca, passar pelos aforismos do Epicuro nas “Sentenças Vaticanas” e acabar, como não poderia deixar de ser nas “Meditações” do Marco Aurélio. Não é um trabalho de uma vida, digamos que era capaz de demorar duas tardes, mas, entretanto, a economia de peste vai abrir e há que deixar isto para depois.
II
Está resolvida a questão da felicidade hoje. Não sendo absoluto, deixando algum espaço de manobra para o “ses” e os “depende” conclui-se com facilidade. Em tempos de peste, como em outros, é mais feliz quem tem mais dinheiro. Basta ver a capa do Público de hoje: “Tenho mais medo de andar nos transportes públicos do que no hospital”. Por mais que os mais hábeis na arte de postar nas redes nos queiram demonstrar que a saúde vem primeiro, tal máxima é apenas tentativa de consolo dos menos afortunados. Ando a pé. A minha grande fortuna é a escolha. Ter escolha; o seu contrário é sobreviver. Que luxo poder escolher. Escolhi o tempo e espaço no lugar da ostentação e do aforro. Ando a pé. Devia ter escolhido o aforro, estaria em melhores lençóis para enfrentar a peste. Ninguém aguenta falar de crise por mais uma década. Devia ter escolhido o aforro. Não aprendemos nada com as crises. Os nomes são importantes: vou ter de encontrar um outro nome para crise e outra maneira para aforrar. Devia ter escolhido a ostentação, devia ter entrado no Matrix quando tive oportunidade.
III
O Matrix é o sistema. Neo, esse sistema é o nosso inimigo. Mas quando estás dentro, olhas à volta. O que vês? Empresários, professores, advogados, carpinteiros. As mesmas pessoas que estamos a tentar salvar. Mas até o fazermos, estas pessoas são ainda parte do sistema, o que faz delas o nosso inimigo. Tens de perceber, a maior parte destas pessoas não estão prontas para serem desconectadas. E tantas delas são tão inertes, estão tão desesperadas, tão dependentes do sistema, que vão lutar para o proteger.”
IV
Com o cinema é mais fácil comunicar. Ninguém quer saber da tua história e do teu conhecimento. Dá-nos imagens. Queremos imagens. Ninguém te lê pá! Dá-nos imagens. O Varoufakis explica-te o mundo na dicotomia Matrix vs Star Trek. Também ninguém percebe o Varoufakis. Aquele líder de um pequeno partido “patético” que nem sequer conseguiu eleger um único deputado pan-europeu. O patético é dele. Confio num tipo que se assume como patético. E naif. Acho que o Varoufakis se deveria considerar naif também. Para juntar às definições que ando a coleccionar: estrategista; panfletário; patético; naif.
V
O Baudrillard morreu aos 77 anos. Uma idade bonita para morrer. Agora que conheço pessoas de 70 anos acho que 177 é uma idade ainda mais bonita. O filósofo francês tinha um apartamento em Lisboa, mas comprou-o no tempo em que ainda ninguém morava em Lisboa. Agora já ninguém mora outra vez em Lisboa. Nem no Porto. Nunca houve fila nos minipreços da baixa do Porto, nem na peixaria, nem na frutaria. Não se lê o Baudrillard nem há filas. O Baudrillard não escreveu o Matrix. Ele escreveu coisas com títulos fantásticos como “A Sociedade do Consumo”, “Simulacros e Simulação”, “Moralidades Pós-Modernas”. Deve dar tudo muito jeito agora para enfrentar a crise. Isso e dinheiro.
VI
Ando a pé. É o meu luxo. Mas ontem usei o carro para ir buscar uma peça que estava na 31 de Janeiro. Num dia habitual ia a pé, mas não consigo passar da Praça Carlos Alberto a pé. É como andar nas ruínas de Roma, mas com menos esperança. A cidade acaba no Sírio da Miguel Bombarda. Mantém-se aberto, a vender pelo postigo. Para a semana já abrimos? Para quem? A economia do medo ainda precisa de lucrar mais uns anos. Interessa-me particularmente a procura da felicidade. É difícil escavar em tempos da peste, de pouca fé e de nenhuma utopia. Onde é que andam os utopistas? Continuo apenas a ver os especialistas a promover a inacção. Vamos ter outro pico em Setembro ou não? E quando vier uma peste pior, vamos continuar a evocar a inflação?
VII
Continuo sem conhecer nada melhor que o rendimento básico incondicional para vencer a peste. Mas isto sou eu que sou naif.

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