30.04.2020 Interessa-me particularmente alguma utopia e pouco trabalho I
I
Tem-me
interessado particularmente, durante os últimos anos, elaborar cada vez melhor
uma pergunta, que hoje está mais ou menos assim: É possível reformar o
capitalismo para um patamar mais democrático, de forma progressiva, mas não
revolucionária, mantendo todas as ficções de desejo ao mesmo tempo que elimina
as relações de escala?
II
Há aqui
algumas manhas e contradições: o progresso não revolucionário mais próximo de
um conservadorismo de conformação da condição-humana; uma ideia de
democracia-participativa enquanto método para o alcance da síntese do eixo maçónico;
a possibilidade do aperfeiçoamento de estilo meritocrático de base poética; a abolição
do sistema de classes e da santíssima-trindade do poder – tudo isto face à
possibilidade de partir do hoje concreto - capitalista - e não de um estado iniciático
dos escombros pós-apocalípticos.
Enquanto
tentava sintetizar em profundidade deparei-me com um sumário muito mais simplista
e como tal, apelativo: a fome. Podemos criar um sistema em que cada ser humano
tem direito a não morrer à fome, quer tenha nascido no Corno de África ou em Saint-Germain-des-Prés?
Isto
parece-se pouco com a soberba intelectual do “pensamento” e mais com aquelas motivações
artificiais tão exploradas nos guiões dos concursos de beleza, “e para o
Mundo? Paz; que não haja fome; que possamos nascer todos livre e iguais” - a
ingenuidade enquanto método é, como temos vindo avançar, de uma extreme utilidade,
desde que bem acompanhada.
Recorrendo
novamente a Keynes, que teima em não nos largar em tempos de peste(s): “Se o
problema económico fosse resolvido, a humanidade perderia o seu propósito.”
– o trabalho, acrescento. Mas afinal, podemos resolver o problema económico ou
é só uma questão de mudança de objectivos de vida?
III
Se a tarefa
de elaborar a pergunta é já por si da mais barroca aventura, traz a vantagem de
não viver da resposta para se animar, bastando a si própria a colecta de
elementos para se ir reconfigurando ao sabor dos tempos.
Para o caso,
dois cromos para a caderneta da pergunta: 33% do dinheiro do mundo está a ser guardado;
sempre que necessário, os estados imprimem dinheiro.
Talvez antes
de 1971 não fosse mesmo possível resolver a fome no mundo. Por questões
metálicas, digamos. Ficcionou-se algures nos primórdios da humanidade que Alexandre
se espalharia pelo espaço cunhado em prata e ouro. Hoje, que já não precisamos
de ouro e prata, nem sequer para a joalharia (declaração de interesses!), será
que podemos caminhar para a comida-grátis?
Os 33%
guardados certamente ajudariam ao banquete.
Não podemos
abandonar esta refeição sem o óbvio: lançar sacos de arroz de um avião no meio
do deserto não é bem o que entendemos por não “morrer à fome”.
IV
“Sentir,
degustar o tempo esse como um percurso: de aprendizagem, de exaltação, de
sabedoria.
Diante da morte o importante é estar.” Rui Caeiro, poeta, fala-nos em degustar o tempo. Confesso que só me interessou a questão do dinheiro até um par de anos atrás. Vivendo na bolha da classe média em períodos de social-democracia até à idade pós-académica, fui degustando o tempo ao sabor do belo, da arte, da cultura, da arquitectura, da filosofia, dos livros e dos filmes. Longe de ter tido uma educação clássica, o prazer do entusiasmo diário com os mestres (completado com uma capacidade de suprimir a fome pelo salário) foi o meu alimento. Lembro-me do dia em que compreendi a frase do Xavier Corberó “a poesia é a medida de todas as coisas”. Mas também me lembro do dia em que percebi que, se continuar a usar minha ética, cheguei ao limite superior do que o capitalismo tem para me oferecer.
Diante da morte o importante é estar.” Rui Caeiro, poeta, fala-nos em degustar o tempo. Confesso que só me interessou a questão do dinheiro até um par de anos atrás. Vivendo na bolha da classe média em períodos de social-democracia até à idade pós-académica, fui degustando o tempo ao sabor do belo, da arte, da cultura, da arquitectura, da filosofia, dos livros e dos filmes. Longe de ter tido uma educação clássica, o prazer do entusiasmo diário com os mestres (completado com uma capacidade de suprimir a fome pelo salário) foi o meu alimento. Lembro-me do dia em que compreendi a frase do Xavier Corberó “a poesia é a medida de todas as coisas”. Mas também me lembro do dia em que percebi que, se continuar a usar minha ética, cheguei ao limite superior do que o capitalismo tem para me oferecer.
Um limite
bastante baixo. Se o digo no presente, e não no passado, é que, por algum
motivo, ainda aqui estou.
V
Um ano antes
de eu nascer, Gilles Lipovetsky escreveu um livro genial que não só sintetizava
os processos recentes como iria caracterizar as sociedades dos próximos tempos,
ou melhor, o individuo dos próximos tempos. Tão importante se tornou “A Era do
Vazio” que quanto mais lermos de Lipovetsky percebemos que ele anda há
quase 40 anos a re-escrever o mesmo livro (não consigo engendrar um melhor
projecto de vida do que re-escrever diariamente um livro que se escreveu aos 39
anos – ainda me restam quatro anos). Lipovetsky, na Era do Vazio falava de mim
e de todos o que eu conheço – e não gostei particularmente da minha biografia.
VI
O capitalismo
é, dos sistemas conhecidos, o único que lida com uma das virtudes da teologia:
a esperança.
Quem hoje nasceu
no Corno de África, pode - eventualmente, com muito trabalho, algum sofrimento e
sorte, se tiver saúde e bajular as pessoas certas pelo caminho, entre outras
coisas – conseguir alugar duas assoalhados em Saint-Germain-des-Prés.
Em sentido inverso, dos sistemas conhecidos, o capitalismo é o único que nos dá
verdadeiramente a possibilidade de dar a quem nasceu em Saint-Germain-des-Prés –
se se portar mal, estoirar a herança em cocaína, fizer maus investimentos especulativos
e desamigar os seus companheiros, entre outros erros grosseiros no seu
lifestyle – poder vir a ter uma vida mais miserável do que um sobrevivente do
Corno de África. Se o pior do capitalismo é a sua instabilidade endémica, o
melhor do capitalismo é também a sua instabilidade endémica. Ou tudo isto é
apenas ironia?
VII
“Nós como
sociedade não podemos assobiar para o lado, não podemos fazer de conta que não
estamos a assistir a esta dor em directo, a este sofrimento que nos esmaga, que
é no fundo nós termos esta espécie de parque de estacionamento à espera da
morte”. A ideia do parque de estacionamento à espera da morte de Tolentino
de Mendonça, a importância da poesia e da teologia em dias de peste.
VIII
Amanhã é dia
do trabalhador. Falamos amanhã sobre o trabalho. Afinal isto hoje continuou a
ser sobre a utopia. E sobre a ingenuidade.

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