02.05.2020 Interessa-me particularmente usar pinças
I
Simbolicamente,
ontem, foi finalmente entregue ao Governo de Portugal uma petição – também ela simbólica -
com a missiva do rendimento básico incondicional (de emergência). Cinco mil
portugueses consideraram particularmente interessante perder dois minutos da
sua quarentena numa acção passiva de solidariedade. Gosto particularmente das
entrevistas da Maria João Seixas. “Defina-me Cristianismo numa palavra?
Solidariedade”. Não sei foi bem esta a pergunta. Não sei foi bem esta a
resposta. Solidariedade. Alexandre Palma, teólogo, padre e jovem.
Solidariedade. E eu a pensar que a proposta cristã para este século – como a
proposta da nova esquerda - era a pergunta. Afinal continua a ser:
solidariedade.
II
Podemos
chamar-lhe “solidariedade”? É que já batemos demasiado na “caridade”. É um tema
complexo. Deve-se usar pinças. Uma exposição confessional, abastecida da minha
habitual ironia, talvez consiga arriscar entrar no nacional-panteão dos
proscritos só alcançado pelo Vasco Pulido Valente. Deve-se usar pinças. A Maria
de Fátima Bonifácio devia usar pinças. Ou só ironia?
Ontem, no seu
diário de pensamento, Rui Resende definia a caridade, a solidariedade, como a “ambulância
do capitalismo”. “O Capitalismo é instável? Mas a caridade
estabiliza o instável. Ying e Yang. Dá-lhes porrada, mas logo a seguir manda a
ambulância. A caridade é a ambulância do capitalismo. E não mandes demasiadas
ambulâncias, senão eles habituam-se” – cortei deliberadamente o final
do texto, usei pinças.
III
Há aquela
divisão clássica da esquerda-direita, onde a esquerda não admite a caridade,
por não aceitar que tal possa ser necessário. Ao estado, enquanto
soma-dos-indivíduos compete tudo. Compete cuidar, acompanhar, amparar, salvar.
A nós, competem os impostos. Pagar para cuidar, acompanhar, amparar, salvar.
Usar pinças: os meus impostos são a minha solidariedade. Usar pinças: o
rendimento básico incondicional é a verdadeira solidariedade. Usar pinças: com
o rendimento básico incondicional poderemos mudar a nossa definição de
solidariedade. Usar pinças: se pagarmos os impostos esvaziamos o propósito de
milénios de religião.
IV
Descobri
também com a Maria João Seixas, na voz doce da Filomena Molder o Qohelet. Nunca
ouvi a palavra Qohelet dito por mais ninguém. Não há hebraico no google
translator. Qohelet.
Ecclesiastes 7:5 “Melhor é ouvir a repreensão do sábio do que a canção dos tolos.”
Ecclesiastes 7:5 “Melhor é ouvir a repreensão do sábio do que a canção dos tolos.”
V
Várias vezes
durante a minha curta experiência profissional fui confrontado com a inevitável
pergunta: Queres dar parte dos lucros para uma acção de solidariedade? Usar
pinças: enviamos a ambulância? Nunca fui capaz de usar a ambulância.
É de extrema
complexidade o manejo de pinças.
Como resumir
milénios de senso-comum na pequena-frase possível após o envergonhado “Não”.
Não vou enviar a ambulância, pelo menos com as sirenes
ligadas. Séneca: "Eu dou para não perder. O que for doado
deve ficar num lugar de onde não deve ser reclamado, mas possa ser
devolvido". Usar muitas pinças com Séneca. “O internacional
português Cristiano Ronaldo e o empresário Jorge Mendes vão equipar uma ala do
Hospital de Santo António, no Porto, para cuidados intensivos”. Usar
muitas pinças com o futebol. O que pretende Séneca que lhe devolvam não é bem o
mesmo que os magnatas do futebol. Usar pinças: quantas alas médicas se
conseguem pagar com os impostos que foram jogar ao campeonato holandês?
VI
Sendo estas
propostas de ensaios meras variações sobre o mesmo, voltemos ao mesmo: “buscam
solucionar o problema da pobreza, por exemplo, mantendo vivo o pobre; ou,
segundo uma teoria mais avançada, entretendo o pobre”. Wilde não usou
pinças. A ambulâncias do capitalismo entretém o pobre. A solidariedade entretém
o pobre. Usar pinças com cautela. A esquerda não reconhece o entretenimento do
pobre, porque não reconhece a ideia da pobreza. Deuteronômio 15:11 “Pois
nunca deixará de haver pobre na terra; pelo que te ordeno, dizendo: Livremente
abrirás a tua mão para o teu irmão, para o teu necessitado, e para o teu pobre
na tua terra.”. Nunca deixará de haver pobre na terra. Nunca
deixará de haver pobre na terra. Transformamos em pergunta: Nunca
deixará de haver pobre na terra?
VII
A propósito
destes dias da peste, de tanta ciência ou falta dela, lembrei-me de Heraclito.
Consta que doente, com pouca fé na medicina, terá sido induzido por um
curandeiro a enterrar-se em estrume de vaca para curar-se. O esterco terá
sugando toda a humidade do seu corpo. Terá morrido na merda, literalmente. Terá
morrido na merda porque não aceitou a ciência. Os Suecos acreditam na ciência e
na economia. Os Suecos pagam muitos impostos. Usar pinças. Interessa-me
particularmente (não) usar pinças.

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