03.04.2020 Interessa-me particularmente o fragmento
I
Faz amanhã um mês que comecei a
tornar públicos estes interesses particulares. Escrevo nesta fórmula desde 2017,
simultâneo com o meu encontro com as Meditações do Marco Aurélio. “Interessa-me
particularmente” é uma entrada de diário.
A percentagem-maior de entradas são “roubos”:
pedaços copiados de artigos de jornais (digitais), entrevistas, citações. Seguem-se
as “notas": um outro-tipo de roubos, aos livros, aos filmes, aos passeios, às
conversas. A “autobiografia” é também uma parte fundamental, capaz de operar na
dicotomia de contrários: entre o histerismo adolescente nos dias maus, e a
soberba intelectual nos dias menos maus.
II
O grafismo de numeração do
tipo-capítulo foi roubado a Walter Benjamin. O texto curto e directo fruto do
assalto a Gonçalo M. Tavares. O clamor da sorte da vida-boa saqueado a Miguel
Esteves Cardoso. O tom confessional espoliado de Montaigne. O fragmento -
pensava eu - furtado de Godard, que por sua vez o desviou de Dziga Vertov.
III
Interessa-me particularmente o
fragmento. Na noite em que vi o Livro de Imagens do Godard elegi para
mim esse maneirismo. Godard levou-me à ideia de Ensaio e desde essa noite que o
procuro. Sobre o que é o Ensaio já aqui ensaiei por demais. E rouba-se Theodor Adorno,
sem qualquer remorso, nem insegurança:
O Ensaio pode ser construído “metodicamente
sem método”, sem qualquer “vergonha com o que os outros já fizeram”,
pelo contrário, apropriando-se do seu espólio
O Ensaio não precisa de tudo
explicar, pois “não começa com Adão e Eva, mas com aquilo que deseja falar;
diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim” – a
liberdade.
“O Ensaio dá-nos a liberdade-total, “sem
cerimónias” e os “seus conceitos não são construídos a partir de um princípio
primeiro, nem convergem para um fim último”.
O Ensaio “deve permitir que a
totalidade resplandeça em um traço parcial, escolhido ou encontrado, sem que a
presença dessa totalidade tenha de ser afirmada”.
O Ensaio “desorienta a
inteligência para um devaneio impotente”, infecundo.
O Ensaio “recua, assustado, diante da
violência do dogma”, “livre da disciplina da servidão académica”, que tantas
vezes o considerou bastardo.
O Ensaio, “porém, não quer
procurar o eterno no transitório, nem destilá-lo a partir deste, mas sim
eternizar o transitório”, o aqui-e-agora.
O Ensaio é “impulso expressivo”.
O Ensaio “não apenas negligencia a
certeza indubitável, como também renuncia ao ideal dessa certeza.”
O Ensaio “desafia gentilmente os
ideias da clara et distincta perceptio e da certeza livre da dúvida”
O Ensaio “pensa em fragmentos, uma
vez que a própria realidade é fragmentada”, “a descontinuidade é
essencial ao Ensaio; seu assunto é sempre um conflito em suspenso”.
IV
“Escreve ensaisticamente quem
compõe experimentando; quem vira e revira o seu objecto, quem o questiona e o
apalpa, quem o prova e o submete à reflexão”.
Qual é o meu objecto? Sou eu – talvez
seja a resposta mais honesta.
“Tudo é autobiografia”.
V
Interessa-me particularmente o ensaio.
Por estes dias de peste, ensaiei o diálogo. “Não és um ensaísta, és um
dialoguista” dizia-me o meu companheiro de luta-nenhuma, que ainda me trata
pelo meu nome-de-solteiro nos seus – esses sim, verdadeiros – diálogos. Ainda tentei
ser um dialoguista durante uns dias. Se o sou: dialogo comigo; e a minha procura
seguiu o outro caminho, em direcção ao fragmento. Durante estes trinta dias não
publiquei em oito; o que não quer dizer que não tivesse feito entradas de
diário. Metodicamente sem método, tentei, como Miguel Esteves Cardoso, publicar
diariamente. Tentei, como Miguel Esteves Cardoso, sentir diariamente. Tentei,
como Miguel Esteves Cardoso, viver diariamente.
VI
Ainda Adorno, diz que ele (Montaigne,
não o ensaio em si – não fosse Montaigne o ensaio-per-si) “nada tem a
oferecer além das explicações de poemas dos outros ou, na melhor das hipóteses,
de suas próprias ideias. Mas ele se conforma ironicamente a essa pequenez, à
eterna pequenez da mais profunda obra do pensamento diante da vida e ainda a
sublinha com sua irónica modéstia”.
VII
Sempre que acabo um texto, convoco
voluntariamente a censura – a Sílvia é o meu lápis azul, ainda que teime em
pouco riscar. Faço sempre duas perguntas:
Envergonha-te isto que escrevi hoje?
Serve para alguma coisa?
É minha preocupação que a minha soberba
intelectual no-acto da escrita (valha-me a soberba quando escrevo, que tanto me
peca nas outras vinte e três horas do dia), misturada com uma boa dose de
ironia, não ofenda.
É minha preocupação, já que o publico,
que o que escrevo possa servir para alguma coisa. Tento servir. Tento realmente
servir. Doutra forma estes interesses particulares poderiam continuar como
entrada de diário silencioso, engavetado em pastas digitais submersas. É
serviço.
Serve-te para alguma coisa esta
alter-perspectiva?
VIII
Estes interesses particulares publicados,
iniciaram-se a servir o propósito de discutir, em tempos de peste, a
importância do Rendimento Básico Incondicional. Periodicamente, persisti na sua
referência: fui panfletário e evangelizador da causa. Fui, à minha maneira,
activista. Acredito verdadeiramente que o RBI tem o poder da mudança, mas é tão
difícil apregoar a mudança.
É tão difícil comunicar.
É tão fácil ensaiar.

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