04.05.2020 Interessa-me particularmente a peste II
I
Hoje saí. Vim ajudar a abrir a
economia. Vim ajudar a testar a curva.
“Abrir a economia”, agora diz-se
assim como numa torneira, abre-se, fecha-se, a economia e a curva. Hoje saí,
vim abrir a loja. Vim ajudar a testar a economia. Vim ajudar a abrir a curva. Abre-se
ou testa-se a economia? Não sei. Abre-se ou testa-se a curva? Não sei. Desconfio
sempre dos que sabem. Quer na curva, quer na economia. Dos que abrem e dos que
fecham. Da verdade. Desconfia-se sempre da verdade. Prefiro as dúvidas.
II
Hoje um jovem surfista na
televisão dizia que tinha feito um “surf maroto” durante a quarentena.
Acho delicioso usar o sufixo maroto. Foi um desobediente civil à sua escala,
orgulhoso da sua pequena infracção. Uma marotice capaz de levar uma pequena
admoestação do seu Pai. Porque o Estado, para este pequeno delinquente é Pai.
Quanto muito Avô, que repreende e de seguida dá o doce.
O Estado para este maroto
inconsequente não é ele próprio. Qual foi o dia em que desistimos de ser o Estado?
III
O “Sueco” como carinhosamente o
chamo foi entrevistado ontem pelo Público. Johan Giesecke. Finalmente. Em
Portugal só tínhamos ainda variantes do mesmo “milagre”.
E quando, aberta a economia, o
teste da curva der a verdade, fecha-se ou abre-se o país?
No Sábado falaram do caso
sueco no JN. Finalmente. Já era tempo de conhecermos outros “milagres”.
Gosto de ouvir o Paulo Portas na
TVI para confirmar o que é que percebemos, todos, sobre a peste. O que cada um
de nós percebe é com cada um; o que todos percebemos é com a televisão. O Paulo
Portas não tem falado dos suecos, logo, só há milagres.
IV
A cidade do Porto está parada.
Não abrimos a economia hoje, talvez para o mês que vêm, talvez em Dezembro
próximo.
A cidade do Porto está parada.
Não testámos a curva hoje, talvez no mês passado, talvez ainda em Dezembro do
ano passado.
Como lidar com uma abertura-fecho
a duas velocidades? Abrimos a economia, hashtag, “eu fico em casa”.
Estamos realmente a abrir a economia ou a testar a curva? A cidade continua
parada. Não há multidão nas ruas, nem nas praias, nem nas rotundas entre
concelhos. Há multidão em frente da televisão. Hashtag, “eu ainda estou em
casa”. O “sueco” diz coisas engraçadas, já leste? É só engraçado, ou
triste, não sei. Não sabemos se aquilo é verdade. Há que desconfiar da verdade.
Desde que ponhas as verdades todas em cima da mesa já fico contente. Nem tens
de escolher uma, desde que as conheças a todas.
V
Trabalho de casa: como ainda
andamos com a história do Anarquismo, agora tenho de ir ao Etienne de La
Boétie. Nesta coisa dos amigos há que conhecer os dois senão não se conhece
nenhum.
VI
Tapo o nariz, destapo o nariz.
Com a máscara. Descansa, tenho as mãos lavadas. As mãos, o computador, a
caneta, a mesa, o espaço. Tudo desinfectado. Não entrou ninguém ainda, não
abrimos a economia hoje. Há que empurrar a pedra. Valha-nos a economia digital.
Mas testámos a curva hoje, menos mal.
Quando é que chega a minha
máscara preta certificada? Esta máscara branca que tenho faz de mim um pequeno
delinquente maroto como o surfista na televisão. Hoje, destapei o nariz. Mas
estava sozinho.
VII
As lojas-com-funcionários abriram
logo às 10h. Lavavam os vidros com alguma veemência à minha passagem. As lojas-de-autor
não abriram logo às 10h. Já lavaram os vidros com alguma veemência na semana
passada. As lojas-de-autor não lavam os vidros todos os dias. As lojas-com-funcionários
precisam de inventar trabalho. As lojas-de-autor precisam de inventar paixão.
Como ter paixão em tempos de peste? Apaixonando-nos pela peste.
VIII
O Warren Buffett
desapaixonou-se dos seus aviões em tempos de peste. Vou usar aqueles hashtags
das redes sociais: “isto dá que pensar”. O resto não, só isto. Há coisas
que dão para pensar, outras não. Pensar é acessório. É um plugin que se liga e
desliga, que se abre e fecha como a economia. É preciso avisar em que é que
precisamos de pensar.
Wikipédia: “A ironia (do grego antigo εἰρωνεία,
transl. eironēia, 'dissimulação') é uma forma de expressão literária ou uma figura de retórica que consiste em dizer o contrário daquilo que se quer
expressar. Na literatura, a ironia é a arte de zombar de alguém ou de alguma
coisa, com um ponto de vista a obter uma reacção do leitor, ouvinte ou
interlocutor.” Já ando nisto há um mês e ainda me pergunto se a ironia tem
funcionado. É que citar a Wikipédia é a maior das ironias. Os Anarquistas
gostam da Wikipédia.
IX
Hoje saí. Hoje voltei para
casa com um enorme desalento. Vou-lhe chamar melancolia. Hoje cheguei a casa
com uma enorme melancolia. Mudei a palavra, mudei o estado de espírito. Automaticamente.
As palavras são importantes. Tenho medo das palavras. Agora que já estou em
casa estou melancólico. O Benjamin era melancólico. O Baudelaire era melancólico.
O Rossi era melancólico. Deve ser bom ser melancólico. Eu quero ser melancólico.
As palavras são tão importantes.
X
Outro dia alguém escrevia que
com esta peste não tinha saudades de sair de casa. O que tinha realmente
saudades era daquele prazer envergonhado de voltar para casa. De estar fora e
querer voltar. Não me consigo lembrar quem disse isto. Gostava de me lembrar e
lhe dar a devida glória. Há alguma ética no roubo, das ideias. A falta de memória
deixa-nos pouco espaço para a ética. Tal como não conhecer todas as verdades ou
não reconhecer a ironia.

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