07.05.2020 Interessa-me particularmente os limites I
I
Agora saio todos
os dias. “Parece-me que isto vai passar rápido”: a frase é minha. “Passa
o quê? Passa o vírus, de pessoa para pessoa, ou passa o medo?”: questiona
ironicamente a Sílvia. Não sei. Ambos. Nenhum. O limite dos dois. Ontem troquei
momentaneamente, pela primeira vez em tempos de peste, o meu comércio de
proximidade por uma média-superfície. “A máscara dá uma falsa sensação de
segurança” repetiu tão insistentemente como convictamente Graça Freitas,
durante os últimos tempos da peste.
E dá. Na grande
superfície, as pequenas células-humanas mascaradas, parecem viver em tempos de
paz. Comportam-se como há sessenta dias atrás. Sem medo. “Parece-me que isto
vai passar rápido”, o medo. A Rua de Cedofeita está também hoje como se não
tivessem passado sessenta dias especiais. Células-familiares cruzam-se com
células-de-afecto, que se cruzam com células-indivíduo, essa célula desacreditada
em tempos de peste.
II
É possível que o
medo passe mais rápido que vírus. É possível que, por isso, o vírus passe mais
rápido de indivíduo para indivíduo, de indivíduo para célula-familiar, para
célula-social, para célula-empresarial, para célula-comunal, transformando-se
rapidamente em medo. Novamente para medo. (ou não). O mundo-online anda cheio
de medo. Ainda cheio de medo. O mundo-físico anda, desesperadamente, a querer
perder o medo. Quantos são os que têm medo? Como se perde o medo? À força? Como
se ganha o medo? Também à força.
III
“Pois nunca deixará de haver pobre na terra”
Deuteronômio 15:11. Nas minhas insónias, tento resolver na
folha-de-cálculo/tabuleiro-de-xadrez imaginário este nosso grande defeito
humano. Há quem me queira convencer que, pelo percurso, engracei com o
Anarquismo. Se tenho aversão à autoridade e não tenho particular estima pelos
poderes do Estado, também me resta pouca fé na humanidade. Esta peste,
mostrou-nos que o indivíduo suplica pela salvação exigindo acção autoritária.
De país para país - uns de forma mais original, outros, por simples processo
mimético - experimentam-se modelos de intervenção musculada com assinatura eleitoral
por baixo.
Temos medo!
Queremos ficar em casa!
Mas a rua está
já bem composta. São os que têm de continuar na sua normalidade. Onde acaba o
limite daquele que está em casa e começa o limite do que está na rua?
IV
Rui Resende
falava ontem, a propósito de Manuel Castells, sobre “uma expressão,
diariamente, massacrantemente martelada na nossa infantil consciência colectiva”,
a nova-normalidade. Ele conhece o meu asco a esta estirpe (tão a propósito) de expressões
que ganham vida-própria além das suas próprias definições. Porque é preciso
definir, engavetar - o que Resende se recusa. Para aceitarmos a expressão,
precisaríamos de aceitar primeiro, tal coisa como “normalidade”. Colectivamente
é-nos abjecto exibir uma qualquer noção de normal. O normal-social seria tão
castrador como re-potenciador da eterna batalha das igualdades / diferenças.
Quanto muito, aceitamos falar em normalidade enquanto posto individual. Desta
forma, assumido academicamente discorrer sobre o “normal”, a minha individual
normalidade é o meu momentum de há 56 dias atrás. Apenas isso. A minha
nova-normalidade é como me encontro dois meses depois. Apenas isso. A propósito
disto, que faria várias páginas de um interesse particular, uma única nota: a
nova-normalidade só é matéria de reflexão para o espaço classista intermédia,
só a classe média é que pode falar de nova normalidade. Para os ricos falamos
em normalidade; para os pobres, normalidade-com-máscaras: mais-do-mesmo, o
mesmo quotidiano, ao qual acrescenta apenas um acessório de 1€ diário. Será que
reciclam diariamente a máscara?
V
Sobre os limites
- tema muito caro também ao meu caro interlocutor de quanto estes quasi-ensaios
se disfarçam de campos-de-batalha ideológicos - interessa-me particularmente
contrapor, para o futuro, que: entendo os limites, não de forma vertical, em
que possa ambicionar alcançar o ponto de charneira onde me é possível
transgredir (ou usando uma terminologia pop, passar de nível), mas,
contrariamente, de forma horizontal.
Exemplo: durante
algumas tentativas de biografia terei escrito: “André Ramos, trabalha na contaminação
da arquitectura e da arte”
Interessa-me
particularmente a definição, o engavetamento, enquanto método. Sendo um
generalista, ao conseguir definir conceptualmente, no caso, arte e
arquitectura, torna-se mais esclarecida a proposta de acção na região limite de
ambas. A definição é mais estimulante para o jogo de oposições do que para a
associação das pertenças (de forma mais-ou-menos acrítica).
VI
Ainda sobre o
Anarquismo, a recusa de definição só permite o seu conclusivo desaproveitamento
enquanto ferramenta de organização eudemónica. O Anarquismo perde em espectro.
Alargando-o, nega-se. O tronco comum de pré-definição parcial, pela sua largueza,
impede o convite.
Proposta 1: re-definir
Anarquismo para o sec. XXI pós-peste.
Proposta 2:
re-definir Anarquismo para o sec. XXI pós-peste, combinado com notas visuais,
de imagem, cenário, estética.
Proposta 3:
re-definir Anarquismo para o sec. XXI pós-peste, sem palavras, através de uma
imagem.
Proposta-Conclusão:
Esquece o Anarquismo e junta-te à Internacional Progressista.
VII
Uma proposta de
limite: uma região intermédia de contaminação disciplinar entre dois paralelos.
VIII
“Pois nunca
deixará de haver pobre na terra”: Deuteronômio 15:11
Pois nunca
deixará de haver rico na terra e mesmo que, por proposta anárquica, progressista,
verde, social-democrata ou definição-que-há-de(-)vir, deixe de haver pobre, o
remediado será o novo-pobre: Meritocrático 12.75

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