11.05.2020 Interessa-me particularmente alguma desobediência
I
Fiz uma nova encomenda de
máscaras pretas. As primeiras não chegaram. Tento outra empresa. Continuo com
as cirúrgicas. Insisto nas certificadas não sei porquê. O placebo é conseguido tanto
por um cubo de açúcar como por uma echarpe de verão. Agora escrevo de máscara,
desobedientemente com o nariz de fora. Prometi que não escreveria sobre
máscaras quando me obrigassem a usá-las. Desobedeci-me a mim próprio. Interessa-me
particularmente a desobediência.
II
Para além de comida, máscaras
e ter pago ao carpinteiro, não tinha gasto ainda dinheiro em ócio nesta peste.
Uma nova estante deu-me o mote: não compro mais livros enquanto não ler estes
todos. Fantasia. Que ilusão. Ler não tem nada de linear. Semi-desobedeci-me
novamente, procurando versões disponíveis online – mas falta a matéria, o
sublinhar.
No livro de ontem dizia na
edição: “Se você pagou por esse livro, você foi roubado”. Gostava de ser
editor. De livros digo, de coisas, já sou. Quero juntar “editor” às definições
que ando a guardar para mim: estrategista; panfletário; patético; naif; editor.
Comprei finalmente dois livros
em tempos de peste, numa livraria informal de redes sociais. Espero que cheguem
- as máscaras não chegaram. Mas as máscaras são precisas – os livros não. Interessa-me
a auto-desobediência.
III
Gosto dos contrastes
público-privados de Teerão. A peste, mesmo a sua versão portuguesa, faz-me
lembrar Teerão. Há um livro de fotografia fantástico da Shirana Shahbazi, Tehran
North. O livro não tem nada a ver com a obra dela. Desobedeceu-se.
Há um Teerão dentro de casa e
um Teerão no espaço-público; há um Porto mascarado e um Porto rebelde.
A pequena-desobediência. O
risco de (não) sermos apanhados a infringir as regras. As borboletas no
estômago da fuga ao drone, ao carro da reportagem do pasquim televisivo. Os miúdos jogam futebol no campo da escola
secundária que se vê de minha casa. Todos os cafés, mesmo os da baixa, recebem os
clientes habituais, em grupo, à porta fechada. Os amigos juntam-se para festas
de anos subversivas. O gel nas entradas das lojas continua intacto.
Quando chega a app da peste,
para cometermos o pequeno delito de deixar o telemóvel em casa?
IV
Já sou demasiado velho para
desobedecer. Já somos demasiado velhos para desobedecer, mal-habituados, nós, a
história da humanidade. “Assim, a primeira razão da servidão voluntária é o
hábito.”
V
“Tomai a resolução de não
mais servirdes e sereis livres. Não vos peço que o empurreis ou o derrubeis,
mas somente que o não apoieis: não tardareis a ver como, qual Colosso
descomunal, a que se tire a base, cairá por terra e se quebrará.” O livro
gratuito de ontem, Discurso de Servidão Voluntária, do La Boétie, de
1563.
A desobediência-simples, veladamente
patrocinada e incentivada pelo próprio Colosso é o nosso dia-a-dia da peste.
VI
O tal Partido Político a quem
enderecei a Carta Aberta de ontem ainda não me respondeu. Talvez tenha de forçar
o contacto, com o grupo. Esqueci-me de perguntar na missiva, se há lugar no
partido para a pequena desobediência. A pequena, apenas, como em La Boétie, uma
desobediência por inacção.
Mas não sei se Boétie mantém a
razão, e se a recusa de participação é em si acção suficiente para os tempos de
hoje.
VII
A Internacional Progressista
inaugurou hoje o seu site. Para além das mais comuns caracterizações-cliché da
esquerda, uma nota que me é particularmente interessante: “that rewards all
forms of labour while abolishing the cult of work.” Abolir o culto do
trabalho.
Vou trabalhar nisto, com
bastante culto.

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