13.05.2020 Interessa-me particularmente a peste III
I
Ontem, um sem-abrigo no supermercado afasta-me com os olhos. Os 3m de distância que cultivo sempre que se torna espacialmente permissível, não eram suficientes para ele. Uma inversão de perspectiva. Há dois meses era dele que se afastavam. Comprou uma cerveja. Esperou pacientemente a cinco metros do tabuleiro de compras, afastou-me até aos quatro. Nove metros de fila, duas pessoas. Esperou que o chamassem para a passadeira rolante. Acompanhei-o no movimento. Olhou-me de novo. Parei. O supermercado era grande. Sete da tarde. Uma cidade de afastamento social.
II
Decidi que continuaria sem ver os meus pais nas próximas semanas. A desajeitada cerimónia protocolar serviria o encontro de um incómodo artificialismo. Avisaram-me: “Podes ir, mas almocem em topos da mesa distantes. E na sala, enquanto conversam, usem máscaras.” Sugeriram-me a cópia: “Olha, eu falei com eles no patamar das escadas”. Os meus pais são novos. Isto é pura paranoia. Falta-me a racionalidade por estes dias.
III
Falamos no espaço-seguro das entradas das lojas. Cultiva-se a distância. Arrisca-se tirar a máscara. Suspira-se muito. Vaticina-se o fim. Diariamente um novo fim. O fim peste. O fim do comércio de rua. O fim dos jantares de família. O fim das viagens. O fim do mundo. Só o fim do capitalismo é que não, claro.
IV
Comprei dois livros numa livraria informal online. Encontrei-me com o tipo em lugar público. Um encontro de mascarados. O braço dele não conseguia esticar mais. Entregou-mos apavoradamente entre nenhuma palavra perceptível dentro do tecido-não-tecido que o envolvia. Estaria com a peste? Ninguém pode ter tanto medo. Pelo menos ninguém que leia. Talvez só vendesse os livros e não os lesse. Dizem que é comum existirem agora livreiros que não são apaixonados pelos livros. Não me pareceu o caso. Espero que o tipo não me leia. Quero-lhe comprar mais livros.
V
Cidade deserta. Chamo cidade ao eixo Cedofeita-Boavista onde me movo. O resto tem outros nomes. Nomes de bairros. Nomes de turismo. Nomes de pessoas. Alí, onde mora fulano. Cada vez conheço menos gente por aqui, quer na cidade, quer nas outras cidades. Conheço muita gente na cidade quando a ligo, no sofá, depois do jantar. Olha, vê lá o que este fulano fez hoje. A cidade-real está deserta. A outra, simulação, cada vez mais real, está a abarrotar. Ando a aprofundar isto, ainda não é bem assim. Por isso é que me fui encontrar com o tal livreiro informal ali á cidade deserta. Os livros que me interessam já não passam pela economia formal.
VI
Aos quase 36 anos finalmente percebi o materialismo dialético. Acho que sim. Mas talvez não. Foi ontem à noite. Achei que devia registar para a posteridade dele me esquecer. Mas não foi no livro do livreiro medroso. Esses ficaram a arejar na varanda. Prudência. Há que acautelar.
VII
Nunca gostei de levar livros em segunda-mão para a cama. Nem é pelo pó. Parece que vai mais alguém connosco. Na nova casa não consigo ler na cama. Agora levo o youtube comigo. Mas já me aborrece o algoritmo. Ele não percebe nada sobre mim. Insiste em publicitar-me o Plus500, acha que eu quero negociar em forex. Nem sei qual é o verbo certo para usar aqui. O algoritmo considera que um tipo, de meia-idade, às duas da manhã sem sono, quando tenta perceber o mundo pelo youtube, o que deve querer é especular.
Talvez não fosse pior arriscar a especulação. Estatisticamente, talvez consiga viver melhor do que neste meu, posto em-espera, em espera que o medo permita continuar o caminho.
VIII
Em-espera. É por isso que nunca gostei daquela coisa do empreendedorismo. Não há dignidade nenhuma no esperto que se safa nas crises, contra todos, esquivo nas pingas da lei.A glória da espera é a minha glória.
IX
A glória da acção fica para outro dia. Hoje, só consegui esperar.

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