15.05.2020 Interessa-me particularmente a paranoia

I

E então, será que isto já passou e que não se deu conta? Depois há a paranoia, claro. Fica a paranoia, depois do medo. Medo é outra coisa. E a paranoia? O dicionário diz assim: “designação dada a diversas perturbações psíquicas, geralmente associadas a desconfianças patológicas e erros de interpretação da realidade.” Erros de interpretação da realidade? deve ter sido isso. Há que errar para avançar, não? Pensas que os devíamos desculpar? Mas eles são orgulhosos, não vão dizer que erraram. Mas era bonito, não era? Diziam assim:

II

Mundo, errámos, desculpem lá, avancemos como se nada tivesse acontecido. Enganámo-nos há três mil e quinhentos anos, mas, ainda vamos a tempo de corrigir isto. Não? Mas para errar é preciso que alguém erre. Um, dois, cinquenta e sete pessoas que erram. Mas aqui ninguém errou, errámos todos, de forma mais ou menos sincronizada. É como naquelas grandes empresas, que quando erram, não há um que sinta o erro. É preciso sentir o erro. Já ligaste para um call-center e pediste para falar com o tipo que errou?

III

Desconfiança patológica? diz no dicionário, mas já se fala muito disto agora, não? Já começaram por aí os adeptos das teorias da conspiração. Gostam de encontrar os culpados. A culpa. Mas depois há aquela coisa da expiação. Há que cumprir a penitência pós-culpa. Achas que isto é expiação suficiente?

IV

O António Barreto escreveu um texto fabuloso – irónico pois claro – no início disto tudo. Listava todos os culpados, ia rebuscar as melhores fantasias. Aquilo era credível até certo ponto. Consegues sempre encontrar os culpados se quiseres cavar bem. É fácil. Como método podes começar por analisar as contas bancárias. Depois vais lá por intuição, empiricamente, servindo-te do rasto do dinheiro – virtual sim, isso do dinheiro físico já acabou há uns anos. Não? Talvez não, mas vai acabar agora. Não te sentes sujo a manejar euro e meio quando vais comprar o pão? Dinheiro virtual, MBWay, Paypal, Crédito, Bitcoins, nada. Já viste, depois quando precisares de dinheiro já não podes ir assaltar o banco como nos westerns do século passado.

V

Já nem há liberdade para roubar. Acabaram-se os assaltos na rua. Mas não se acabarão os assaltos, sabes disso não sabes? Vai à lista conhecer os maiores ladrões. Podes usar o mesmo processo que usaste para encontrar os culpados. E eu nem gosto de teorias da conspiração. Já teorias adoro. E teoria, no singular, que delícia.

VI

Tens falado com pessoas com certezas? Eu não gosto. Um tipo que me diz: eu acho que... para mim isto é assim… já não fico para assistir ao resto da conversa. Também não era uma conversa. Os tipos que têm certezas não conversam. Encontra-se pouca gente para conversar por estes dias. Há muita gente que quer falar. E até te consigo encontrar pessoas dispostas a ouvir. Já a conversar, está difícil, sabes? Agora também já não te podes sentar a uma mesa de café, a ler, à espera que passe alguém que também esteja a ler o mesmo livro que tu. Porque? Por paranoia, claro. Porque é que não podias ir ler para a esplanada? E se lesses no telemóvel? Não sejas paranóico.

VII

Já te reinventaste esta semana? Deixa lá, eles também não. Só aproveitaram para sacudir um bocado o mundo. Parece que só 14% do mundo se deixou sacudir. É pouco. Deve ser no mundo ocidental. Acho que a India não conta para esta tabela. Conta para a outra, dos países que ficaram mais adeptos do autoritarismo. Quando acabar a peste, e depois o medo, e a seguir acaba a paranoia e depois o que é que fica? O teu consentimento. Tu é que pediste isto tudo, sabias? O La Boétie não tinha razão. Não obedecer já não basta.  

VIII

Este fim-de-semana vai estar melhor tempo, o que é que vais fazer? E eu? Obrigado por perguntares, é tão raro perguntarem-nos coisas, conversar, não é? Uma ideia para cá, uma para lá, a minha influência a tua e vice-versa. Aquela coisa da reciprocidade, não é? Pensar em conjunto. Estares mesmo interessado no que eu tenho para dizer. Claro, há egoísmo nisso. Tu só me perguntas porque posso dizer alguma coisa útil para ti. Sei lá, por exemplo. Olha, este fim-de-semana vou-me alistar para a acção. É boa ideia, não é? Ou é só paranoia minha?


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