16.05.2020 Interessa-me particularmente a peste IV

I

Não, por aqui os problemas não são especialmente complexos comparando como os teus. Há a paranoia generalizada, claro. Algumas filas para comer. Alguma fome, mas residual. Qualquer fome, mesmo que residual é intolerável bem-sei, mas se queres abusar dos rankings, não nos podemos queixar realmente. E depois há o número de mortos, claro, mas isso é geral. Podes falar dos números, dos gráficos, das projecções, mas quando te morre alguém conhecido, mudas de perspectiva, não é? É só uma questão de perspectiva isto da peste. Podem morrer os que quiserem, até os conheceres, não é? Depois vês a coisa do outro lado.

II

Pois, não somos refugiados, nem temos campos de refugiados; não tivemos de regressar ao campo para procurar comida na pequena agricultura de subsistência hierarquizada; o nosso governo ainda não é autoritário, mas temos muitos de nós a pedir a autoridade; não temos guerrilhas mascaradas de religião a violar as nossas filhas; temos apenas famílias conservadoras e fazerem vídeos patéticos a pedirem para voltar à missa; há umas filas para o banco alimentar, até são grandes, mas a notícia é curta; depois há aquelas pensões geridas por negreiros, ainda não percebi bem aquele fenómeno; temos as máscaras e alguma rebeldia; quando desaparece uma criança desaparecem as máscaras; a temperatura ainda está razoável, não temos de nos mover, ainda;  a fauna e a flora estão relativamente intactas; extinguem-se uns linces ibéricos, só, acho; de resto são só os problemas endémicos do capitalismo, nada de especial, a que já não estejamos habituados e aceitamos alegremente;

III

Por aqui resta-nos o medo e a paranoia. São os nossos verdadeiros problemas por estes dias.

Aí já não há? A sério, os amigos já se juntam? As lojas já estão com clientes? Já convives na rua? O espaço-público de novo ocupado? Que boas notícias me dás. Não. Por aqui, não. Só paranoia mesmo.

IV

Eu e a Sílvia temos uma brincadeira engraçada. Quando precisamos, por exemplo, de pousar os copos do café na mesa, à espera que arrefeçam, usamos a técnica esquerda-direita para decidir qual é o copo de cada um. Habitualmente concordamos que ela fique sempre com o da esquerda. Mas há dias eu que eu me sinto mais revolucionário e argumento fervorosamente para lhe passar o meu posto à direita. A hora do café é praticamente uma batalha ideológica. O café dela sabe sempre melhor. A solução para o meu dilema passaria por convidarmos alguém para tomar café. Mas agora não dá. Pois é, a peste não é? A paranoia, não é? Com três eu já podia reivindicar orgulhosamente o meu lugar a meio. Mas pensando bem, não ficava contente. Temos de ser cinco. O meu copo seria sempre o segundo a contar da esquerda.

Ou o primeiro. Irei continuar a gladiar-me com ela, infinitamente.

V

Ontem estive a ver o primeiro live do Progressive International. É ridículo ter de se continuar a apregoar os chavões do costume: justiça social, cooperação, igualdade, ecologia. Se perguntares a qualquer um na rua, 70% concordarão contigo que: sim, é preciso alguma justiça social; que ganharias mais rapidamente a luta à peste com cooperação; dir-te-ão que somos todos iguais, nas nossas diferenças; afirmarão que a ecologia é a prioridade número dois do planeta (a seguir à peste, ou não será a peste também um problema ecológico?). Mas depois há qualquer coisa que falha. É pena não sabermos como resolver.

VI

Como é que um indivíduo pode desagregar-se em teoria e prática. Há ali um momento, entre a teoria e a prática - chama-lhe momento político se quiseres – que está a falhar. Quando resolvermos isto, quem sabe, se não resolvemos tudo. Ou parte. Ou alguma coisa. Ou não resolvemos nada, mas ao menos tentámos. Tentar. Tentar, tendo a convicção-plena de que não existe tal coisa como vitória - para o nosso lado da história.

VII

Como a nossa hora-do-café é bem tardia, regada de combate de princípios, passamos ao lado daquele fenómeno hipster do momento. Hoje quando abri as redes-sociais pela manhã não se fotografava outro assunto. Há quem sinta o FOMO, fear of missing out, que segundo a Wikipédia é “o medo de perder algo ou o medo de ficar de fora, é a patologia psicológica que se produz pelo medo a ficar fora do mundo tecnológico.” Claro que isto sempre existiu fora do mundo tecnológico, nada de novo aqui.

FOMO não costumo sentir. Sinto-me bem melhor com o POMO, proud of missing out.


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