01.06.2020 Interessa-me particularmente algum activismo III

I

Quando os media e as demais dinâmicas sócio-digitais deixarem de achar divertido contar apenas duas histórias de cada vez, estamos prontos para começar o difícil exercício do equilíbrio.

A propósito de George Floyd, hoje ao almoço, na FOX NEWS, uma entrevista a dois jovens afro-americanos, proprietários de uma loja vencida pela cólera dos alegrados pro-manifestantes. Esperam que a dupla de empreendedores (negros, é preciso não parar de o repetir) escolham um lado. O mero acto de eleger um lado é escolher sempre o lado errado. Não há só dois lados: claro, nós deste lado, até já sabemos isso e pior, gostamos do nosso lado que diz que há múltiplos lados. Escrita-confusa, faz parte. As respostas simples estão do outro lado, no outro lado, que não o nosso (que é composto de vários lados).

II

Avanço para uma outra definição de progressista: aquele que se demora a compreender a realidade (aqui, o se, faz toda a diferença – a vontade de se demorar).

Aceitar é outra coisa. Pode-se aceitar a realidade sem a compreender, uma espécie de assunção passiva e acrítica (natural, dirão alguns). A compreensão é diferente. Também se pode não compreender por não se aceitar. A propósito de George Floyd, cabe-nos pensar sobre a perigo destas coisas das compreensões e aceitações, principalmente quando completadas por um ilusório processo de escolha binária, que faz da queima de carros um acessório muito secundário na discussão (ainda que os media o tenham eleito por troca de outras verdades).

III

Mesmo assegurando que não aceita, sempre que alguém admita compreender os “porquês” históricos das acções, está mais próximo da letargia resignada do que da (aparentemente ineficaz) acção participativa.

A ingenuidade por outro lado, quando completada por alguma ignorância, torna-se o sentido certo para o caminho da transformação. Por outras palavras, o tempo vai-nos dando compreensões perigosas. Um ser humano, por acaso agente (enquanto aquele que opera) de autoridade (enquanto poder legitimo?) faz o que faz a um ser humano, (não) por acaso negro. Resultado expectável: a classe-média dominante na democracia mediatizada, pede mais autoridade para combater o caos instalado. E quem instalou esse caos? A resposta oficial não é verdadeira e a verdadeira não consegue tornar-se mediatizada (logo oficial).

Hoje, na SIC, jovens afro-americanas-loiras a furtarem uma loja de sofás.

IV

A importância da manutenção de uma certa demora na compreensão dos fenómenos é urgente – para não castrar a acção. Mas, sabendo exactamente quais os efeitos-colaterais de qualquer resposta colerizada fruto da continuação da acção injusta, é preciso esquece-lo e ainda assim, actuar?

Carros a arder e lojas pilhadas é o constante efeito-secundário esperado.

Exige-se hoje, pelos media e outras dinâmicas sociais digitais, que qualquer um de nós assuma uma qualquer posição extremista no binómio, sob culpa de estar a compactuar com o outro lado se não o fizer. Mas não me parece necessário.

O activismo gráfico, palavras, cartazes, correntes de publicações nas redes-sociais em círculo vicioso de afinidades ideológicas é pouco melhor que nada. Manifestações na rua (semi-pacificas) de apologismo do anti-autoritarismo rapidamente transformam o seu propósito no seu contrário, convertendo-se em algo (quase) mais nocivo que a acção inicial e passível de ser re-apropriado pelo lado contrário.

E então o que é desejado fazer-se? O que se faz sempre – acção (com efeitos-secundários) - aguardando pelas costumeiras lentas transformações?

Nunca fomos, historicamente tão iguais, dizem uns e têm razão.

Estamos ainda tão longe da igualdade, dizem outros, com igual razão.

Terá havido, aqui e ali, pontualmente, momentos onde fomos mais iguais que agora, dizem uns terceiros, cobertos de idêntica razão aos demais.

V

Mas o costume, que sobre nós exerce um poder considerável, tem uma grande força de nos ensinar a servir.” La Boétie. A banalização das máscaras é uma aceitação perigosa. A normalização das máscaras é aceitação do medo enquanto inerência sistémica da sociedade. Não nos parece hoje nocivo o uso de máscara, enquanto protecção anti-viral. E amanhã, quando a máscara for hábito? E amanhã, quando recusarmos a proximidade, o toque, a amizade, a convivência, a troca. “Assim, a primeira razão da servidão voluntária é o hábito.”

VI

Não concordo com o (meu) lado progressista de que nascemos livres e iguais. Pelo contrário, nascemos com a carga histórica, condicionados e desiguais. Se tivéssemos nascido livres, bastar-nos-ia conservar. Trabalho mais complexo é o da libertação - que exige acção. Há uma pequena previsibilidade positiva na previsibilidade negativa da acção. Da próxima vez que um operativo da autoridade sufocar um cidadão com um joelho, podemos sempre lembrar-nos que já aconteceu antes e não gostámos, não aceitámos, não compreendemos. É preciso que volte a acontecer para cada vez ir acontecendo menos. Pena que os hábitos são lentos, tal como os progressistas na aceitação das evidências.

Quanto mais demorar (atrasar) um progressista a compreender a realidade, melhor realidade vai encontrando (e construindo) pelo caminho - até nunca precisar de aceitar.

VII

Avanço para uma outra definição de progressista: aquele que demora a habituar-se à realidade ou aquele que cria, lentamente, novos hábitos. Ou será isto afinal um conservador? É o problema da obrigação actual de escolher um lado: inviabiliza-se o ponto de equilíbrio e a promiscuidade ideológica tão úteis à desejada evolução.




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