10.06.2020 Interessa-me particularmente a paranoia II
I
O Passeio das Virtudes e o Jardim do Morro foram fechados. O espaço-público aglutinador da juventude ao final da tarde no grande Porto. Eu nem gosto particularmente de cerveja, mas não há casos novos de peste no Porto há quatro dias. Cinco mortos de peste no país. Centenas de mortes de doenças anónimas silenciadas. Quantos são os que morrem por cá? 333 em média por dia (mais ou menos isto, é mais fácil decorar números redondos). Não haverá São João. O Bairro da Bouça insiste nos cartazes que vai ficar tudo bem (desde que não haja São João) enquanto se vaticina uma crise pior que a de 1929. Uma crise é uma crise, perversa na sua desigualdade. 1929 é tão abstracto quando 333. Se não conheces ninguém que morreu, 333 é um número; se não conheces a crise, 1929 é um número; se não viveres esta crise, 2020/21/22/23/ é um número.
E reinventares-te, não? Estou a tratar disso.
II
Invenção: “acto ou efeito de inventar; mentira; embuste; parte da retórica que ensina a procurar os meios de agradar ou persuadir.”
Inventar: “fazer o invento de; idear; criar no pensamento; fingir”
Reinventar: “tornar a inventar”
Reinventar: tornar a fingir, tonar a mentir, mentir de novo, mentir melhor. Os cidadãos precisam de criar novas mentiras pós-pandémicas. Reinvenção ou como ser oportunista. Uma boa empresa pós-pandémica: criar novos desejos, desejos oportunos. Procurar novos meios de agradar ou persuadir.
Reinventar: acto de fazer tornar a desejar (o mesmo, de preferência) ou o retorno do desejo.
Reinventar: criar outros desejos ou simplesmente desejos de paranoia. Reinventar a paranoia literária e económica.
III
O Bruno Vieira Amaral acha simplesmente estúpido começar um livro pelo Título. O Saramago acha que não. Eu gosto do Saramago, logo acho que não: pode ser um método. A reinvenção começará pelo título. O método de reinvenção: o título. O título enquanto catalisar. A paranoia da máscara. A paranoia das contradições. As contradições da máscara. As contradições mascaradas. A máscara mal colocada esconde o duplo queixo, mas não protege da peste. Qual peste? A que virá depois do calor. A outra. A próxima. A máscara enquanto pulseira; pala para o sol; brinco; amuleto. A máscara enquanto máscara é que não. Já viste alguém a colocar a máscara correctamente? Sim, era médico e adoeceu, mas era novo e não morreu.
IV
“Camões desconfinou Portugal no século XVI e continua a ser para a nossa época um preclaro mestre da arte do desconfinamento. Porque desconfinar não é simplesmente voltar a ocupar o espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo plenamente; poder modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidades novas, como um exercício deliberado e comprometido de cidadania. Desconfinar é sentir-se protagonista e participante de um projeto mais amplo e em construção, que a todos diz respeito. É não conformar-se com os limites da linguagem, das ideias, dos modelos e do próprio tempo.” Tolentino hoje, a 10 de Junho.
V
HBO retira “E tudo o Vento Levou” do catálogo nos EUA por perpetuar racismo, diz o Público. Um novo Me Too de revisionismo cultural. Não consigo estar do lado do meu lado-habitual quando se chega à arte e à cultura (e à universidade). É um tema subtil, é preciso usar pinças delicadas e alcançar perspectivas panorâmicas. Um tema para outro-dia, sem paranoia.
VI
Mas diz também o Público: A máscara no banco de suplentes deixa de ser obrigatória na liga alemã. Não nos tirem a paranoia, é tudo o que temos. Não nos tirem a máscara. Sem máscara teremos de nos reinventar. 8 pessoas a ouvir o Tolentino. Duas mil no Bruno Nogueira. Nenhuma no Jardim do Morro.
VII
E reinventares-te, não? Estou a tratar disso, vou começar pelo título. É um método como outro qualquer. Há que começar por algum lado. O Saramago não começava a escrever sem um bom título não era? Mas também o início da escrita não é o início do livro, pois não? Não, tudo começa antes de começar. Os inícios são falsos como as reinvenções e as máscaras. Paliativos, sabes? Enganas-te a ti próprio dizendo - vou começar - quando na realidade já tinhas começado, só não o sabias, ou sabias? Arriscas-te, portanto, a dizer que: quando se começa, a coisa já acabou? Talvez, é capaz de ser isso. É o momento do engano: dizes - comecei agora - quando na verdade acabaste. Como é que dizia o Benjamim? Não sei de cor, tenho de ir copiar ao livro, logo à noite quando chegar a casa. E depois? Refaço o final deste ensaio. E ninguém dá conta? Já viste que coisa fabulosa que estes tempos nos permitem, rescrever um livro em tempo-real descaradamente à frente de quem nos lê?

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