16.06.2020 Interessa-me particularmente a cidade da peste
I
O que é a cidade
do teletrabalho? O Que é a cidade da teleuniversidade? A cidade da crise já
conhecemos - da austeridade - a cidade que vexatoriamente “apertava o cinto”
vimos nascer na primeira década. A cidade mascarada começamos agora a conhecer.
A cidade das distâncias. Meia-cidade ou a cidade a cinquenta-por-cento ou a cidade a um-terço. Conhecemos
já uma cidade até às 20h. Já não se janta fora – e não há bares. Como é uma cidade
sem aviões? Como é uma cidade sem bares?
A desejada cidade sem carros tornada real. A cidade dos transportadores
precários de comida.
II
A cidade dos
transportadores precários de comida. Já pediste comida pelo telemóvel? Eu não,
vantagens de morar no centro, possuir um par de pernas e ainda ter alguma
motivação para sair de casa. Já viste ajuntamentos-sem-distanciamento de caixas
verdes? São verdes as da minha cidade. Já vi em laranja. Qual é a cor da tua
cidade a partir das 19h? Cor de restaurantes abandonados, desolação e vazio.
Qual é a cor do vazio? Qual é a cor das caixas vazias e das carteiras vazias
dos transportadores de caixas vazias? Mesmo quando os transportadores precários
de comida têm as caixas cheias, continuam com as carteiras vazias.
III
“Pela forma
como se apresentam, os carregadores de refeições e outros bens ao domicílio têm
a faculdade de evocar — e invocar — as suas origens, marcados que estão por um
índice histórico de outro tempo. Eles são a mais viva contradição: servem os
mais modernos modelos de consumo, ao mesmo tempo que actualizam, nos seus elementos
patéticos e na sua linguagem mímica, uma imagem escandalosamente anacrónica e
politicamente incorrecta de um trabalho que suscita a memória da corveia.”
António Guerreiro, há uns meses.
Opção B: manda
vir comida, dá a esmola ao gigante tecnológico e paga um salário generoso em papel (moeda
não chega) aos “carregadores de refeições e outros bens ao domicílio”.
IV
Quantas funções há na cidade? A flânerie (para Guerreiro depois de Benjamim e Baudelaire), a deriva (para Guy Debord), a deambulação (para Montaigne), a vadiagem (para Agostinho da Silva).
Qual é o teu método de percurso pela cidade? Nenhum
método? Estás em teletrabalho, vais à teleuniversidade, usas a servidão
voluntária para consumir, fatiaste o cinema e vês em streaming na cama, recusas-te
a ir ao ginásio mascarado, enojas-te do transporte público debaixo do chão (mas
ias por cima, no ar, se te deixassem, para um sítio qualquer com mais peste).
Já saíste à cidade pela noite? Digo, pelas 21h? As 21 são as novas 3 da manhã.
V
Como está a tua
cidade? Em Paris dizem-me que parece que nunca houve peste; em Barcelona houve,
mas já ninguém a vê; em Londres ainda há, mas ninguém a sabe ver; em Cracóvia
nunca foi vista, nem sentida; no Porto já não há, mas toda a gente jura que ainda a vê.
Perspectivas. É assim ou ao contrário, depende do ponto de vista. Depende de
quem te conta a história.
VI
A minha é assim:
uma cidade despovoada a partir das 18h (e mal-povoada antes das 18h), pobreza
visível e invisível, janelas sem luz, alguma chuva, disneylandia do turismo em stand-by, supermercados
sem fila, uma nova esquadra de polícia de proximidade, o sino da igreja toca a
horas diferentes das novas missas. Mas, ontem vi um avião. Podemos iniciar os
processos de esperança e despoletar os sistemas de elevação corporal e a optimização
dos sorrisos para servir e bem-receber. Uma cidade desenhada para receber que
não tem quem servir. Eles vêm aí – eles estão a chegar. Mas, ontem vi um avião. Há que
desenhar a cidade para a próxima peste. Como? Como sempre se desenharam as
cidades: para servir os seus. À cidade da peste resta a cidade-local.
Desenhemos cidades locais para a próxima peste.
VII
“A própria
cidade, confessemo-lo, é feia. Com o seu aspecto calmo é preciso algum tempo
para se perceber o que a torna diferente de tantas outras cidades comerciais em
todas as latitudes. Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombas, sem
árvores e sem jardins, onde não se sente o bater das asas nem o sussurro das
folhas, uma cidade neutra para dizer tudo?” Orão, por Camus, a cidade de A
Peste.

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