17.06.2020 Interessa-me particularmente a sorte na arquitectura

I

Ontem o Pedro Ramalho fez 83 anos, pelo que teria 68 quando nos cruzámos. Chamávamos-lhe, à jovialidade inconsequente da época: o holograma. Apareceu-me casualmente uma fabulosa entrevista promovida pela Casa da Arquitectura. Já há alguns meses que não ouvia um “mestre”. Mas o Ramalho não era um dos mestres, era o holograma: andava por lá; nunca nenhum de nós falava com ele; nunca riscou por cima dum esquisso nosso; nunca comentou uma maqueta (nunca, é o exagero do costume). Foi azar. Depois de ouvir a conversa de ontem recolhi-o finalmente para o panteão dos mestres. Que sorte que, em tempos de tele-universidade, temos o Youtube para recuperar o que não nos calhou em sorte.

II

Claro que mestres não faltavam pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto no início dos anos 2000. Apanhámos a última aula-oficial do Siza, o último ano do Sérgio Fernandez, meio ano do Alves Costa e o Távora a acenar-nos à entrada do Doutoramento Honoris Causa de alguém (não sei se o Teotónio Pereira, o Rui Resende que nos presenteie com a sua memória). Aprendemos com Francisco Barata e o Fernandes de Sá, com o Adalberto Dias e o Carlos Prata, com o Lacerda, o Nuno Brandão e o Camilo. Que sorte. Mas o meu caminho não era com estes da prática, do projecto, do desenho, do atelier. A minha FAUP era a da teoria contemporânea, dos artigos para as revistas, da curadoria, dos livros, das exposições, dos programas de televisão. A minha FAUP sempre foi o Manuel Graça Dias, o Pedro Gadanho, o Nuno Grande, o Álvaro Domingues e o Carlos Machado (e ainda, tantos anos depois, sem o saber, num certo sentido, o Manuel Mendes).

III

Mas sorte houve pouca. Quando começámos a sair da faculdade em 2008, começava a crise a entrar. Metade de nós emigramos e outra metade ficou a arrastar-se por trabalhos mal pagos até arriscarmos um inconformado afastamento - e começar a disparar para caminhos mais ou menos conexos. Falta de Sorte. Quando no segundo ano nomeámos a Arquitectura enquanto Poesia - e medida para todas as coisas - desconhecíamos a importância da sorte e do azar nos andamentos dos percursos.

IV

Salvo as honrosas excepções do costume, faltamos nós hoje na Faculdade de Arquitectura (para cumprirmos o sonho de nos tornarmos nos próximos mestres). A sorte afastou-nos não só de nós próprios, mas de um caminho de continuidade. 

O que tem hoje a nossa geração, os trintas (e muitos), os da-austeridade, para oferecer à Arquitectura? Devíamos estar a redesenhar a escola e a disciplina, a testar novos métodos de manter a Poesia no centro do combate digital e tecnológico, mas andamos ainda na luta do projecto, ainda à procura do cliente certo, da obra certa para falar por nós. Parecia tudo mais fácil no tempo dos mestres, talvez fosse só um problema de percepção. Também os mestres passaram por períodos de extrema conturbação, mas construíram um caminho conjunto, unido, em bolha.

Aos trintas e muitos, ainda estávamos no início da nossa procura pela Poesia da Arquitectura, quando em sorte nos calhou de novo o azar de outra crise. Já temos outra desculpa-oficial para não nos cumprirmos. Foi a crise. Foi o azar. A crise pós-peste ainda nem chegou e as lamúrias já tomaram o lugar resignado de uma próxima década perdida.

V

Isso ou o seu contrário, como nos ensinaram. E que tal se desta vez, ao contrário da outra crise, accionássemos as mesmas armas dos nossos mestres e, em tempos de tele-tudo que tudo aproxima, nos uníssemos profissionalmente, para variar? Quem curiosamente fez anos no mesmo dia do Ramalho foi o Alberto Lage. Esse sim, pela proximidade foi o nosso verdadeiro mestre: aquele que nos uniu em Bolha, mas que se esqueceu de nos avisar que havia tal coisa como sorte na Arquitectura.

VI
A sorte tem-me trazido uma Arquitectura interrompida e salpicada, feita de projectos nunca construídos e obras pouco acabadas. No Sábado regressou-me todo o entusiasmo pueril da Poesia da Arquitectura numa conversa pela noite fora com novos clientes. Será desta que finalmente (me) cumpro a Arquitectura?

VII

Claro que toda a sorte dos nossos mestres a encontraram no Siza e na sua capacidade de colocar a Arquitectura no lugar do Poema. Na nossa geração da austeridade, também todos reconhecemos a capacidade do Hélder Lopes de transportar a Arquitectura através da Poesia ou a Poesia através das Arquitectura - uma e a mesma coisa. Por isso pá, despacha-te lá a construir que eu quero escrever sobre a tua obra. Boa sorte.


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