27.06.2020 Interessa-me particularmente alguma utopia e pouco trabalho III
I
As múltiplas
velocidades do momentum pandémico mostram-nos uma miscelânea de pontos
de vista dificilmente observáveis noutras pestes. É tudo uma questão de perspectiva. António Guerreiro falava-nos recentemente da “tão vasta e
interdisciplinar reflexão teórica, produzida em tão pouco tempo”. Mas é realmente
este um tempo (e espaço) entusiasmante para arriscar previsões e desejos. Por
mais epidérmicas que soem, é-nos difícil recusar o registo das primeiras-impressões
como se de soluções-finais já se tratassem - e por isso privilegiamos os
cenários.
II
Como este
proto-ensaio se quer tão curto como sugestivo, arrepiemos caminho através da
lista: pandemia, serviços básicos, crise privada, desemprego-simples,
emergência da assistência pública, nova crise pública, tecnologia, desemprego
pela substituição pela máquina, novo emprego, tecnologias digitais, menos
emprego, algoritmo, novo subsídio – num centrifugo movimento que nos é tão
familiar, é sobre este panorama que somos chamados a propor. Sobre o trabalho. E
que dados podemos trazer como novos? Poucos, é certo. Mas se analisar os
do-costume não fosse já suficiente – sob nova perspectiva, nova conjuntura -
avancemos com outras propostas: des-glorificar, des-estigmatizar e des-imobilizar
(tornar rotativo) o trabalho.
III
Usemos para
início de conversa uma imagem por todos aceite como um ofício que - da forma
como o conhecemos - poucos desejamos nele operar: o lixeiro (individuo
encarregado de tirar e conduzir o lixo). Ficcionemos que amanhã, cada um de
nós, se o quiser, por um tempo curto - digamos duas ou três vezes por semestre –
pode percorrer as noites da cidade na recolha dos volumes de putrefacção? Falemos
em dias, não em meses, anos, ou numa vida inteira (era aqui precisamente que queríamos
chegar). Falemos em de-vez-em-quando versos uma-vida-inteira. E noutra
vez, noutro dia, falemos de reposição de stocks em supermercados ou condução de
veículos essenciais (e não essenciais, como os carregadores de desejos às
costas).
IV
Todas as imagens apresentadas são caricaturas do
trabalho inglório, que só é, por ser repetitivo. O estigma, quando divido, desestigmatiza-se.
Com mais máquinas (e um pouco menos de
consumo) e com mais digitalização (e uma mutação no desejo) podemos começar a
analisar a redução progressiva da jornada de trabalho, mas isso já sabemos – depois
podemos não querer ou não conseguir (outras lutas). Pegando apenas num dos
tantos autores, que nos falam sobre os sonhos do pós-trabalho, em A Alma do
Homem Sob o Socialismo de 1891, Óscar Wilde mostra-nos um cenário da
escravidão da máquina em contraponto à escravidão humana (da qual ainda
mantemos hoje alguns simulacros). O que autores como Wilde nos demonstram é a
proposta de uma vida sem trabalho. Operado este exclusivamente pela máquina,
deixa-se o tempo ao humano que desfrute do “lazer cultivado - pois que a ele
o homem se destina e não ao trabalho - ou criando obras belas, lendo belas
páginas, ou simplesmente contemplando o mundo com admiração e prazer, as
máquinas farão todo trabalho necessário e desagradável.” Mais do
que falamos do ócio e das virtudes da desocupação, centremo-nos no erro de
Wilde: depois da máquina e do algoritmo, ainda restará muito trabalho
desagradável, mas só a proposta da sua rotatividade poderia permitir-se
elemento catalisador daquilo que procuramos desde os Gregos, uma vida melhor.
V
Problemas?
Tantos. Poderíamos listá-los começando pela perda de tal-coisa como a
optimização do trabalho, chegando por fim ao historicismo resignado da
evidência de Deuteronómio na impossibilidade da aniquilação da pobreza.
Teríamos certamente de introduzir novas relações salariais intermédias. Diríamos
que seriamos poucos os interessados no dia um, a conduzir imundice pela cidade.
Que seriam apenas os novos e eventualmente os artistas (sempre os artistas), alguns
partidários de organizações menos institucionais e outros intelectualmente proscritos.
Mas como qualquer outro caminho, é tudo uma questão de perspectiva e de se
começar.
VI
Agora que, depois
dos desafios da superficialidade, a pós-pandemia inicia a análise responsável, acrescentemos
mais um layer à discussão. Sempre que falarmos do tele-trabalho (e da tele-universidade)
e as suas repercussões no redesenho da cidade e do território; sempre que ousarmos a renda básica como plano
b; sempre que tivermos a longa e burilada batalha entre o desemprego ou apenas
novo-emprego na era da técnica; lembremo-nos que talvez fosse útil juntarmos o
erro dos utopistas: pensar no trabalho-que-sobra e na forma como o podemos tornar, simplesmente, mais agradável, saudável
e digno – através da rotatividade.

Comentários
Postar um comentário