04.07.2020 Interessa-me particularmente a casa


I

Como é que se chega a um filme? Porque é que se fica num filme? Pode-se chegar pela cor da terra – uma terra familiar (algarve) que não é castanha como mais a norte; que não é vermelha como mais a sul - e ficar num filme pela casa, como no À Jamais (Benôit Jacquot, 2016) – paredes mal rebocadas (pelo tempo) de um cinza-verde minimal-barroco onde habita (temporariamente) um realizador (não se fica pela casa de um burocrata, pois não?). A casa - desenhada e habitada pelo Manuel Aires Mateus - faz-nos ficar Em Câmara Lenta (Fernando Lopes, 2011) à espera da cisterna feita luto ao nadador. Mas o que nos aproxima de um filme, por vezes é só um nome (um autor). Um nome, uma casa, um actor para outro e para nova casa / novas casas – cada pano de parede um fascínio: um quadro de um artista da segunda metade do século passado. Um filme onde se encontra Julião Sarmento não só pelas paredes (pá), o Sorriso do Destino (Fernando Lopes, 2009). O melhor da nossa segunda metade do século passado – as casas, os filmes e os quadros. A sorte de nascer em oitenta e quatro, por aqui.

II

Porque se abandona um filme? Sim, porque os filmes, sendo, não são como os livros. Um livro que lemos pela primeira vez abandona-se e reconquista-se anos depois, precisamente no mesmo ponto da fuga. Um filme permite-se só a pequenos intervalos fisiológicos, como o sono. Abandona-se um filme por sono (em casa), mas raramente se volta a um filme adormecido. Não se regressa ao Mundo no Arame (Fassbinder, 1973) depois do sono em tempos de peste, onde qualquer ideia de futuro nos estorva. Não se regressa à Morte de Luís XIV (Albert Serra, 2015) depois do sono de um filme sobre o sono (a cama), o sono mais longo – quando o todo se absorve na parte.  

III

Mas por vezes os filmes não são abandonados, mas vigorosamente parados sem prognósticos ou desejos de regresso. Termina-se o Adeus à Linguagem (Godard, 2014) aos primeiros minutos, mas quando apenas se queria rever (re-procurar) O Livro de Imagem (Godard, 2018). Os filmes são para regressar, sempre - nisso são como os livros e como as cidades (e as casas), que a par dos quadros - e das casas - são o melhor de ter nascido em oitenta e quatro. A que é que não gostamos de regressar?

IV

Esqueceram-se de nos avisar que isto era (já) afinal o tal de normal, o novo: a pós-peste. Isto, onde as cidades já não se visitam e os filmes só se revêm no sofá porque ninguém aguenta um filme mascarado. Já foste ao cinema? Eu ainda não – não fui a lado nenhum – é a máscara, não me conformo em tê-la como símbolo de falso-futuro. Dizem-me que há por aí bocados de cidades sem máscaras e com pessoas. Restam-nos as casas. Podemo-nos apaixonar por uma cidade por causa de uma casa de um filme? (por-por-causa-casa). Sim. Bertolucci. Paris.

V

Paris é voluptuosa. Os editores vivem na penúria para os poetas poderem ter garrafeiras e uma biblioteca.

Uma garrafa de vinho por dia, dois versos;

uma investida erecta no bordel principal da cidade mais verso, verso e meio, no regresso a casa,

sair (depois) à janela

Para insultar os burgueses que passam,

eis como se diverte um poeta. Em Paris os poetas

não têm dívidas, e até os loucos são delicados.” 

(Uma Viagem à India, Gonçalo M. Tavares, 2010)

VI

Filmes. Cidades. Garrafeiras. Bibliotecas. E casas. O melhor de ter nascido em oitenta e quatro, no tempo das viagens (desmascaradas). E casas. Sleuth (Kenneth Branagh, 2007); há filmes a que se regressa só pelas casas que nunca foram casas: cenários. Valha-nos as produções de baixo orçamento onde os filhos arquitectos pedem as casas emprestadas aos amigos arquitectos. Depois de um Doutoramento em Filosofia, hei-de ainda tirar um curso de Cinema. A juntar à Arquitectura, à Curadoria e à Escrita fico com o ramalhete completo das disciplinas inúteis para (lucrar n´) os tempos da peste – e para todos os outros – mas as únicas que nos seduzem a andar por aqui (mesmo de máscara), porque são: casa.

 

 

 


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