06.07.2020 Interessa-me particularmente a cidade da peste II

I

Não há cidades feias, ensinavam-nos no início do milénio. Talvez a frase seja do Távora, não me lembro. É bom quando não nos lembramos do autor, uma frase humana. Agora - não viajamos - parámos de conhecer as cidades (e a nossa). Todas as cidades são novas: cidades (só) de residentes. A residência é uma novidade nas cidades. Moras aqui? Dormes aqui. Em que cidade tens a tua cama? Essa é a tua cidade. Tens de escolher uma cama para a segunda-vaga. Onde queres dormir? Cidade: uma soma de camas (vazias também). No centro do Porto as camas dos hotéis estão feitas, à espera.

II

Não há cidades feias. Há cidades. Todas interessantes. Vai dizer isso às cidades onde se dorme. Quanto mais dorminhocos (na peste) mais feia é a cidade. As cidades que não são feias estão cheias de camas vazias. O lucro procura a beleza e destrói a beleza (com camas). Nada lucrativo alguma vez foi belo. Mas pouco há de belo que não possa ser comprado, até (e principalmente) o pôr-do-sol.

III

O estilo de uma cidade é visível na arquitectura, na roupa das mulheres e na qualidade dos poemas.” (Uma Viagem à India, Gonçalo M. Tavares, 2010). Não há cidades feias, mas há boa e má arquitectura. Há cidades interessantes feitas de má arquitectura: Macau. Em Macau a roupa das mulheres é interessante como a cidade. E os poemas? Deve-se ler ainda poesia portuguesa em Macau, logo, a cidade é interessante e bela. É difícil fazer maus filmes numa cidade como Macau. Hotel Império (Ivo M. Ferreira, 2018), uma Macau estereotipada - deve ser impossível filmar-se Macau sem a repetição. Fazer a mesma coisa que outros fizeram, validarmo-nos na cópia, na continuidade, em sequência (voltar, tornar a fazer, agora é a minha vez de re-fazer o melhor que já foi feito). Gonçalo M. Tavares também quis ir à India.

IV

A Macau de Manuel Vicente (Rosa Coutinho Cabral, 2011). Os Manueis, Vicente e Graça Dias à deriva / a deambular / a vadiar, dois flaneurs pela arquitectura e pelas cidades. “Eu desenhei isto. Não sei se sabias disto? Toda esta vista de Nam Van foi desenhada por mim”. Eu desenhei isto. Manuel Vicente desenhou isto. Os arquitectos que desenham bocados de cidades, que desenham cidades inteiras para filmes e para poemas (e para roupa de mulher: arquitectos que - indirectamente através das cidades - desenham roupa de mulher).

V

O Miguel Gonçalves Mendes desenhou um filme-ensaio que começa em Macau e termina em Hong Kong, Nada Tenho de Meu (2011). Em Hong Kong os protestantes (hoje) envergam cartazes brancos sem palavras. As palavras não são necessárias para o protesto. Fica a forma depois do conteúdo. Um manifesto-branco. O cartaz vazio. O protesto cheio. A censura como aliado do desenho. Quanto maior a censura, melhor o desenho; ou uma arquitectura livre?

VI

E achar que me posso encantar pelo texto arquitectónico que aqui está, com esta narrativa deste espaço, com esta marcação, com esta criação de sítios”, Manuel Vicente, o tal que desenhou isto. Cheguei à arquitectura (e às cidades) pelo Manuel Graça Dias que foi levado pelas cidades pelo Manuel Vicente. Em 25 de Março de 2019 prometi-me: “um obituário-homenagem é sempre um bom pretexto para (re)começar. E eu recomeço sempre, a escrever”. Hoje, que volto a Graça Dias por causa de um filme sobre Macau, lembro-me de re-começar (novamente). Recomeçar ou repetir. Repetir o que já foi feito. Copiar. Mimetizar. Imitar: fazer à semelhança de; reproduzir (o que o outro fez); tomar por modelo (Priberam). Imitar.

VII

A cidade, se olhada com atenção, é apenas o indício de um homem: e esse homem é sábio, ladrão ou polícia.” (Uma Viagem à India, Gonçalo M. Tavares, 2010). Hong Kong é o polícia, Macau o ladrão. Qual será a cidade da sabedoria? Quem vamos imitar hoje?


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