14.07.2020 Interessa-me particularmente os tempos de laicidade

I

Empanquei na Hagia Sophia durante a última semana. Demasiado simbolismo para a compaginar com duas ou três notas de estímulo autobiográfico. Não consegui escrever (até hoje). Empanquei na Hagia Sophia: os censores bengalis (e outros algoritmos) das redes sociais e demais dispositivos narcísicos, deveriam proibir publicações que começam por "empanquei". Bastava alegar "falta de gosto" do proponente à escrita, que o próprio receberia com agrado a cuidada chamada de atenção e avançaria numa aventura mais prosaica, qualquer coisa como: A autoridade simbólica da Hagia Sophia tem-me estorvado o comentário crítico durante os últimos dias, quase como se a instância da escrita se sentisse instintivamente constrangida pela iminência da transferência icónica / ou ainda: Empanquei na Hagia Sophia porque tal acontecimento de re-apropriação é demasiado importante.

II

A procura de símbolos de laicidade (universalismo). A universidade (tele-universidade) enquanto distanciamento relacional: onde fica o confronto de ideias? A biblioteca (mediateca) enquanto sala-de-estudo digital decorada a papel: onde fica o saber? O museu (parque temático) enquanto atracção comercial: onde fica a questão? A praça (recinto representativo) enquanto espaço da ordem: onde fica a festa?

III

De empancamento pouco padecem estes tempos (só na escrita). E, ainda assim, aqui estamos empancados na peste, com a curiosa: nostalgia de futuro - característica continuada das últimas décadas. Em tempos empancados, espaços de laicidade são disputados pela procura dos domínios. Des-laicizar ou des-secularizar enquanto metodologia que alegra as massas. Estes tempos pedem - incessantemente - a religião. Para um ateu não-praticante, como eu, é difícil encontrar a mesma reverência pela simbologia da nova-religião de des-preocupações estéticas. O encanto ascendente da Hagia Sophia em direcção à secularidade não será possível de encontrar no caminho de regresso / retrocesso. Fracos tempos para os que tentam ser agnósticos sem Bach, sem Bernini e sem Fra Angelico.

IV

A arte evangélica liderada por Kanye West na terra e Elon Musk no espaço. Diz a enciclopédia livre que há 619milhoes de evangélicos no mundo. A mulher do Kanye West tem 177milhões de seguidores no instagram: é fazer as contas. A procura de universalismo (quantidade) através de símbolos maioritários. Poderá a Hagia Sophia - um dia - tornar-se culto evangélico ou concert-hall?

V

Do sítio onde escrevo vejo a cruz da Igreja de São Martinho de Cedofeita (nova). Fracos tempos para a procura agnóstica. O ateísmo torna-se (finalmente) possível (desejável) na leitura maniqueísta: nós (laicos), eles (religiosos). Regressará a luta silenciosa que considerávamos vencida; mas agora, sem deus, apenas com o seu simulacro.

VI

Registo simples: durante o último fim-de-semana a peste acabou por aqui. Gente na rua, nas esplanadas, na praia e nos percursos. Hoje, saí à rua pelas 16 horas vejo mais máscaras do que alguma vez vi. Registo complexo: a peste regressou por aqui. Em Paris, Londres e Barcelona também. Por Cracóvia não sei, o meu correspondente mal sai de casa.

VII

O Domingos Tavares dizia que se deveria ir a Istambul antes de morrer. Deve-se ir a Istambul no seu sentido corrente: antes-de-morrer igual a enquanto-se-está-vivo? Ou deve-se ir a Istambul na velhice – imediatamente antes de morrer, a paragem obrigatória diante do além – a última pagarem? Nunca lhe perguntei, mas a resposta mais óbvia será talvez ambas, deve-se ir a Istambul sempre que se pode. Ainda não fui. A questão agora, é se verei a Hagia Sophia. Ou ainda, que versão da Aya Sophia verei antes de morrer? Gosto de ver o Domingos Tavares a passear pelo Bairro todos os dias. Bons tempos, em que os mestres andam na rua, sem máscara.


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