20.07.2020 Interessa-me particularmente a sorte

I

Caro Miguel, caríssimo mestre. Este, bem-sei, não é o tempo para declarações de admiração e outras vénias. Este é o espaço para falar da sorte. Uma sorte que não é bem tua, nem minha, é da sorte. Nem é tua, porque no espaço que é só teu, te publicam sempre às 00h00. Não é bem minha ,porque no espaço que é de todos, me publicam entre as 08h e-qualquer-coisa e as 09h e-pouco. O que é da sorte, é que entre as 00h00 e as 08h45 de hoje não houve nenhuma opinião (publicada) que nos separe, o que me permite abusar do print screen e justificar um momento de sorte atemporal e aespacial que me lista ao lado (por cima) de um mestre.

II

Mas não te iludas, caro Miguel, eu chamo mestre a todos: infortúnio de não ter tido verdadeiramente nenhum, convoco-vos a todos ciclicamente consoante a necessidade – e quando a necessidade é a escrita, lá vens tu e a tua sorte. Não que eu escreva sobre a sorte, porque a minha sorte não é tão apetecível à coscuvilhice alheia quanto a tua. Se fosse, poderia falar dos verdinhos que comprámos ontem à tarde para o jantar. 2,99€ o quilo para fritar com um arrozinho de couve (oferecida) fazem de mim um economista gastronómico digno das melhores dicas anti-crise. Mas não, a minha sorte não interessa. Se interessasse, escrevia também, sobre o prazer de ir todos os dias almoçar a casa acompanhado pelas eternas discussões de que os refogados da Sílvia demoram sempre mais que os demais.

III

A minha sorte é só minha, caro Miguel. Se fosse de todos, não precisava de usar os filmes europeus de autor (maioritariamente franceses) como desculpa-oficial para escrever sobre como passamos a noite espraiados pelo caríssimo sofá cinzento da cadeira sueca que comprámos por preguiça - quando tudo mandava que finalmente desenhássemos um descansador ATER by scar-id para juntar ao portefólio que desejávamos ver crescer.

IV

Mas não, caríssimo mestre, não me calhou (ainda) em sorte escrever sobre a minha sorte. Por isso teclo no papel coisas sobre a arquitectura, as cidades e alguma justiça social; rebusco umas filosofias e outros misters do pensamento; falo sobre os tais filmes, que vejo à noite acompanhado e sobre os tais livros que leio de dia, também acompanhado e sobre as tais cidades, onde vou acompanhado - e sobre a companhia. Sobre o azar, isso falo, e sobre as paranoias e as melancolias. Só não escrevo é sobre a sorte da companhia. Não caro Miguel, isso deixou para ti: porque nessa sorte, e só nessa sorte, tenho tanta sorte como tu.

V

Porque isto das sortes vai de cada um e não há sortes melhores que outras. Há piores, mas melhores não. Em sorte calhou-me uma peste enquanto oportunidade para me livrar de uma angustia ilusória e pronto, cá estamos nós, caríssimo mestre, virtualmente compaginados, porque isto de escrever em jornais em papel é doutros tempos que (infelizmente) não me calharam em sorte.

VI

Mas, caro Miguel Esteves Cardoso, dois postos abaixo do teu lugar na nossa lista de compaginamento virtual, aparece-me outro mestre: o caro Rui, que tantas vezes tenho chamado quando a necessidade são as lides políticas e sociais. O caríssimo Rui Tavares é também um mestre certamente. Mestre esse, com quem compartilho um inefável e contraditório azar: somos os dois tão penosamente introvertidos que sair da escrita para o mundo civil é de um encantador aborrecimento.

VII

Mas não se pode ter sorte a tudo, não é caríssimo mestre? E não se pode escolher. No que toca à sorte, somos escolhidos.


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