29.07.2020 Interessa-me particularmente a paranoia V
I
Agora, se
tivermos sorte, podemos conhecer pessoas apenas mascaradas. Com alguma preguiça
e falta de curiosidade, até resistimos ir às redes sociais confirmar-lhes o nariz,
como riem, se têm os dentes todos ou pintam os lábios nos momentos de intimidade
pública. A intimidade pública é parecida com a intimidade privada. Há um momento
em que, na cidade, te expões socialmente tirando a máscara. Aquele espaço instantâneo em que estás a menos
de dois metros de alguém e te desmascaras ficou mais próximo da proposta de nudez
integral de um exibicionista.
II
Exibir o rosto
na cidade é o novo-luxo dos países saudáveis e o novo-delito dos países pobres.
Numa ilha próxima de nós, a ostentação do sorriso vale 30 euros de multa. Dois
amantes que não se vêem há muito beijam-se por 60 euros. Dois amantes ainda se podem
abraçar, mas é pouco ético. Nunca a ideia de roubar um beijo fez tanto sentido.
III
Ontem a Sílvia cumprimentou efusivamente alguém que entrou. Perguntei-lhe baixinho: quem é? Eu costumava
olhar para a boca mais do que para os olhos. Era a atracção pelo movimento e
pelo vermelho. Gostava de pintar a cozinha da cor do apartamento do Manuel Vicente. Não
é vermelho, mas desconheço os sufixos que se usam para identificar as cores. As
viagens para Roma custam 12 euros. Duas viagens de ida e volta a Itália ficam
mais barato que um beijo na tal ilha ao largo da Europa. Sobram 12 euros, o preço
de outra viagem de ida. Vou guardar 12 euros para ir morrer a Modena num tempo
sem máscaras. San Cataldo é de antes das máscaras ainda que historicamente durante.
Tem-me interessado particularmente o pós (e o pré) e o vermelho que usava o
Manuel Vicente.
IV
Sempre tive
muita dificuldade em ler pessoas. O que significa a tua máscara? Respeitas-me
ou enojo-te? Não é nada pessoal? É a peste, ainda que tendo, não tem nada a ver
contigo nem comigo, bem sei. Tudo é dual agora. No sítio onde me tiram o cabelo
já não há revistas no sofá de espera. Orgulhava-me da minha ignorância social
face às minhas cúmplices (o outro homem que frequentava este espaço confidencializou-me
que a mulher dele lhe cortou o cabelo na peste). Entusiasmava-me a surpresa de
folhear páginas e páginas sobre gente que desconhecia. A revista mais famosa
era a caras. As caras, mascaradas, agora só se conhecem nas revistas. Há
milhares de pessoas que vou continuar a desconhecer, porque já não folheio a
caras, porque já não lhes vejo as caras.
V
Para quem sempre
usou máscara, mentir é agora um mister ardiloso. O rectângulo de pano com
elásticos cobre o fingimento. O rectângulo de pano com elásticos evidencia a
verdade. Os fingidores têm de aprender a mentir com os olhos. Mas é verão, há
óculos de sol, a luz bloqueia a mentira: como sempre tem sido.
VI
Nunca pensaste
que chegarias um tempo em que és chamado conservador quando queres preservar a
laicidade. Há meia dúzia de canais religiosos na minha televisão. Desconheço os
sufixos que se usam para mascarar o cristianismo. Cantam e interpretam a bíblia.
O Bach também o fazia. Com o Bach podíamos ser ateus não praticantes. Hoje
somos só conservadores culturais. O livro; a arquitectura (pré, durante e pós, algumas
de hoje); o cinema. Ainda não fui ao cinema em tempos de peste. Sim, é a
máscara, claro. Imagino que todos tirem a máscara durante a sessão: o pequeno
delito punível pelo preço de um beijo.
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