30.07.2020 Interessa-me particularmente o fragmento II
I
Lembro-me sempre
da história da fila. Eu estava habituado ao entusiasmo dos corredores da escola
para ir assistir aos mestres (eu chamo mestre a todos), quando passei directamente para as anárquicas
(outro dos sentidos disto) filas dos desfiles de moda e demais zonas de tumulto.
Mas a bicha (em língua pop-arcaico) para tirar bilhete para a conferência do
Lipovetsky no Fórum do Futuro de 2015 parecia a Carta de Atenas em ordem e
higiene. Digna de um alinhamento em tempos de pandemia, indivíduos austeramente
acompanhados de um livro-em-leitura, aguardavam elegantemente pelo levantamento
do papel-acesso gratuito. O átrio do Rivoli respirava recolhimento e reflexão:
uma igreja.
II
“Este ano não
haverá Fórum do futuro. O programa que estava a desenvolver este ano com os
meus companheiros de curadoria - a Filipa Ramos, a Jenna Sutela e o Shumon
Basar - não pode ser realizado devido a vários cancelamentos e outras
impossibilidades. Por vários motivos, mas principalmente devido a um certo
cansaço digital, decidimos propor não uma versão online do Fórum mas antes um
livro, com ensaios escritos e visuais originais e q&as, sobre cosmogonias e
entendimentos culturais sobre o cosmos. “ Guilherme Blanc
III
Interessa-me
particularmente esta ideia de Blanc de um certo cansaço digital. Interessa-me principalmente
a ideia do livro: é o livro (material) que substitui o evento (material) em
tempos em que o digital (anti-toque) é solução e desculpa-oficial para tudo
acontecer – quase, diz-se – como acontecia. O Fórum do Futuro 2020 em livro e
gratuito como sempre foi. O Fórum da /em peste.
IV
O entusiasmo
digital (enquanto contraponto ao cansaço) é para tantos de nós - pré-digitais -
uma raridade, o que nos aproxima mais de um arquétipo pós-moderno de um
velho-do-restelo do que de um eufórico gadget-progressista. Entraremos com a
melhor das brevidades num espaço de inversão dos papeis do progresso e do
conservo. Conserva-se o que é mais raro, menos comum, a caminho da extinção:
coisas como o livro, a conversa, a viagem, o toque ou a secularidade. Da
pandemia sairemos – se já não o formos – os novos conservadores, digitalmente
cansados que estamos da competição com a nuvem.
V
Sabes aquele
momento em que par hasard te cai o Rei Lear da prateleira e começas a
ler do meio? Eu não sei, não tive uma educação clássica. Apesar de ter lá os Shakespeare na prateleira, o que me deixa particularmente em êxtase com os acasos é quando
encontras na televisão uma coisa do tipo o Total Recall de 1990 numa
noite tardia e (re-)descobres que os cenários de Marte são iguais à posterior Acne
do Andreas Bozarth, na Rue Froissart, onde vais religiosamente quando a
caminho do Merci. Há coisas que não substituem a educação clássica, mas, por
vezes, dá-se um jeito.
VI
Tivesse tido eu
uma educação clássica e este texto começado ontem não teria dois autores. Mas
enfim, há que tirar partido disso. Haja tempo e entusiasmo. Mas isto de escrever
para o digital, apesar de suprimir as filas, cansa.
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