11.08.2020 Interessa-me particularmente o tempo II

 


I

O Távora dizia que a arquitectura é o dia-a-dia. Talvez nos tenha mentido. Mas na busca pela eternidade, há que refrear os ânimos e começar a procurar o tempo nos tempos. A arquitectura é o dia-a-dia. Ganho legitimidade para continuar-me em diários. Os diários e a arquitectura, uma relação forçada, mas “o que me interessa na cultura são as ligações”, respondia hoje o Pedro Mexia, outro diarista. O diário de um arquitecto é o caderno de desenhos, não o caderno das palavras, citadas, sentidas e ficcionadas. Pode um caderno de ensaios ser arquitectura?

II

Sant´ Andrea di Mantova. O nevoeiro a entrar pela obra de Alberti é afinal a imagem de Rossi do tempo na arquitectura. O Rossi fez arquitectura a partir de uma caderno de memórias. Tem estado um nevoeiro intolerável e indesejável para as manhãs de Agosto em qualquer sítio. No Porto não. Aceita-se (como o diário). Deixa-se entrar. O nevoeiro, como no começo do Nostalgia do Tarkovsky, o outro poeta. Primeiro o nevoeiro, depois Eugénia na Chiesa di San Pietro – a colunata obscura. O Tarkovsky era arquitecto e não poeta. Os arquitectos desenham (com) o tempo. 

III

I ask myself how the seasons enter into architecture. I pause at the Milanese Galleria in the winter when the fog has entered it”. A Galleria de Milão é desinteressante, símbolo de outros símbolos. De Milão interessa-me como hipótese de caminho de nevoeiro as arcadas do Broletto Nuovo onde qualquer viajante testa a pausa a ver passar la belleza. “O que não é pacífico é a ligação, na nossa vida, entre o belo e o bom. Sendo essa ligação falsa, temos que ter um bocadinho a ilusão de que o belo e o bom podem ser a mesma coisa” continua o ex-diarista (ou pelo menos já não os publica – para quê publicar diários quando se pode publicar ensaios?)

IV

Uma ligação falsa, uma ilusão - para continuar. Por vezes, basta partir de uma ilusão: sempre uma imagem; noutros casos: uma palavra. A ilusão do objectivo; do objecto; do percurso; da (nossa) qualidade. A ilusão do tempo: ainda tenho tempo? / ainda vou a tempo? Pedro Costa realizou o Quarto da Vanda aos 42, mas o Gonçalo M. Tavares escreveu o Jerusalém aos 37. Já terei começado? Quando e o quê? 

V

"Há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu" (Eclasiastes 3:1). Que tempo já passou? Que tempo aí vem?

VI

“Just standing in Sant´Andrea at Mantua I had this first impression of the relation between tempo in its double atmospheric and chronological sense, and architecture; I saw the fog enter the basilica, as I often love to watch it penetrate the Galleria in Milan: it is the unforeseen element that modifies and alters, like light and shadow”. Quando Vincent Scully acabou de ler a Autobiografia Cientifica sentiu-se solitário, sem ideologias, sozinho com as memórias de coisas que tinha visto. A tradução é de 1981, tinha o Scully 61 anos (uma boa ideia para já ter memórias). O Rossi morreu aos 66, o Saramago escreveu o Memorial aos 60. Há uma arquitectura da memória?

 

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