17.08.2020 Interessa-me particularmente a releitura

 


 I
Andamos, à noite, a rever a Noite (1961) do Antonioni. Andamos. Execrável sono. Hoje revemos a terceira parte. Devíamos criminalizar a visualização de filmes à fatia – principalmente nas releituras. Durante alguns minutos, a Monica Vitti permaneceu inerte, com a cabeça recostada nos seus próprios braços durante o nosso letárgico processo de decisão: continuamos? A paranoia da peste culpa os dias e vinga-se nas noites. A parte boa do processo de decisão de interrupção cinéfila é que fico sem sono a partir daí e apanho os restos da aleatoriedade televisiva como o Heat (1995) do Michael Mann, um tipo que percebe de cenários. A Monica Vitti tem 88 anos.

II
Na semana passada usámos dinheiro para comer figos. Encontrava-os pela manhã dentro de um cesto de vime na cozinha do forno - pingo de mel – e por ali se arrastavam, pelas refeições e pelas horas sem-fome (quem precisa de fome para figos?), uma inesgotável fonte sem fundo, renovada na manhã seguinte. Este ano já vou tarde. Consta que não vai haver. Comprámos na mercearia da Miguel Bombarda. Os figos não são compagináveis com a economia. Quando tocado pelo dinheiro, o figo automaticamente comete seppuku, deixando esvair epifaniamente todo o sabor, restando apenas uma pálida memória táctil do seu visco. 

III
Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais” (Genesis 3:7).

IV
Acho que  foi no Heat que me apaixonei pelo Al Pacino. Não foi amor à primeira vista. Hoje, pelas noites de preguiça, procuro nos filmes o que nunca olhei. Descobre-se por exemplo que o Lieutenant Vincent Hanna vivia na casa-própria do Thom Mayne ou como Al Pacino lhe chamou "a deadtech postmodernistic bullshit house" (não vou citar a história da televisão, tampouco a conversa entre os dois - vantagens de não se ter tido uma educação clássica). O Al Pacino tem 80 anos.

V
Tomem uma pasta de figos, e a ponham como emplastro sobre a chaga; e sarará.” (Isaías 38:12). A minha mãe iniciou uma aprofundada pesquisa para perceber a durabilidade de um figo, no ponto, no frigorífico. Pode ser que ainda consiga comer um quando chegar. Não voltarei a pagar por um figo. O Miguel Ângelo escolheu o figo como símbolo do pecado. Não há referências a maçãs na Bíblia. Só um mau tradutor sem um pingo de transcendência podia ter pensado numa macieira como árvore do conhecimento. Santo Agostinho nunca comeu um figo:

VI
Pouco a pouco, insensivelmente, cheguei à extravagância de crer que um figo, ao ser colhido, chorava, juntamente com a mãe, a figueira, lágrimas de leite! Mas se algum "santo" comesse o figo, criminosamente colhido não por ele mas por outrem, misturando-o nas suas entranhas, arrotando e gemendo entre orações, exalaria anjos e até partículas de Deus! Essas partículas do soberano e verdadeiro Deus ficavam presas no fruto, a não ser que fossem libertadas pelos dentes e estômago dum Eleito. Pobre de mim! Julgava que aos frutos da terra se devia mais piedade do que aos homens para quem o solo os produz”.

VII
Pela noite fora descobre-se que o Silencio dos Inocentes não foi a primeira aparição de Hannibal Lecter. Culpado – como é que me passou ao lado o Manhunter de 1986 e a corrida alucinada de Will Graham pela rampa do High Museum of Art em Atalanta do Richard Meier? Coisas que se encontram nas releituras pop. Coisas como por exemplo, no inicio, a cama ensanguentada a remeter-nos para o quarto do Adolf Loos onde se praticavam, alegadamente, actos bem mais repugnante que os ficcionados por Thomas Harris ou Santo Agostinho. Loos e Meier não vão sobreviver à releitura dos tempos. Ontem apanhei também os restos do Frantic (1988) do Polansky. Paris, como Pompeia, também não vai sobreviver à releitura dos tempos. Agora que já sabemos todos ler, temos de encontrar novas escolas que nos ensinem a reler (ou a não reler).

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