08.09.2020 Interessa-me particularmente o entusiasmo

I

O que é que ainda te entusiasma? Sim, não andamos em alturas disso, bem-sei. Mas há ali momentos, não é? Aquele quentinho epifânico que te vem de dentro quando descobres qualquer coisa que te fascina, ou vá, que pelo menos te interessa particularmente. Tem-te acontecido isso quantas vezes ultimamente? A mim, só nos livros e nos filmes, confesso. Não tenho viajado muito, adivinha lá porquê. Não andamos em altura disso, bem-sei, nem de viajar fora, nem dentro de ti. Sempre a repisares as mesmas dores e à espera. Eu sei, andamos todos nisto.

II

O Montaigne dizia que o que lhe era útil podia sê-lo também para os outros – tenta-se pelo menos, não é? É o ensaio que me tem interessado particularmente nos últimos anos. A Maria Filomena Molder queixa-se que não se lê Montaigne por cá. Começa-se pelo ritual de iniciação e depois chega-se ao Adorno que nos ajuda a compreender e pensa-se que já se tem as bases. Entretanto descobre-se um caderno branco da Bazavor - onde um dia hei-de ser publicado - que se compra pela capa e descobre-se que não há preparação qualquer além da ignorância e da confiança do Mark Twain, por mais que re-maquilhada com léxico motivador, transformado em ingenuidade e arrogância intelectual.

III

O ensaio deve envolver-nos e correr uma cortina sobre o mundo” Virginia Wolf

IV

O Ensaísmo de Brian Dillon ainda vai a meio. Sei que me entusiasmo com qualquer coisa quando paro para prolongar o efeito. “Se me forçarem a dizer aquilo que valorizo, que aprecio, em ensaios e ensaístas, às vezes penso não ser mais que o estilo… Ao que parece, sou estúpida e desastrosamente sensível a um certo artifício de estrutura, sintaxe e som.” Encontrar eco é uma longa proeza para quem faz da vida a vitória da identidade. Dillon ensinou-me porque é que demorei tanto tempo a entrar no Gonçalo M. Tavares e porque de lá não quero sair. Ser sensível a gostos envergonhados que mostram pouco mais que estilo: como o cinema francês contemporâneo ou a arquitectura tardo-moderna do pós-guerra japonês.

V

Admiro, caro humano, o que conseguiu salvar da doença e da dor e da loucura”.

VI

Claro que depois também há o entusiasmo de finalmente, passado o nevoeiro do verão, poderes voltar a jantar na varanda sobre a mesa - sem estilo - que compraste em gesto de utilitarismo economicista. O que é que se procura, caro Dillon? A "consolação, um modelo de sobrevivência"? Ando à procura dele. Começa-se no Montaigne, à procura. Depois os caminhos são pestilentos e as carteiras confinam-se, mas pode-se sempre escrever enquanto houver bateria, porque os cadernos são só para os desenhos.

VII

Também não consigo, caro Dillon, escrever para além do fragmento. Tentei um dia, um conto: vinte páginas mastigadas durante duas martirizantes, angustiadas, mas louváveis semanas. Triturar palavras, corta-e-cose de aforismos, investigação para a perfeição - ainda não é para mim. Perdi o concurso, claro está (podemos sempre culpar a sinopse). Temos tempo, caro Dillon. Ainda somos novos. Resta-nos a escrita enquanto consolo para a idade em andamento. No fim teremos a escrita. Haverá maior entusiasmo do que imaginar-nos a escrever o fim?

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