17.09.2020 Interessa-me particularmente o obituário
I
Conheci a semana
passada Cini Boeri (1924-2020) no dia da sua morte. Coisa comum, encontrar-se gente
post-mortem. O obituário, enquanto género jornalístico torna-se a nova
enciclopédia de exibição de mestres e outros influencers dos bons-tempos. Mas sem
conhecer, já a Cini Boeri (gosto do nome) me ajudava a
desenhar discotecas e outras casas maquilhadas a design italiano. Gosto do nome.
Cini Boeri desenhava para envolver e centrar, fosse sofás ou casas. A afirmativa
Casa Bunker (1967) e a altiva Casa na Ilha Madalena (1967) agarram-se aos seus
pequenos pátios exteriores. Cini desenhava a antecâmara para a vista. O
apartamento em Tel Aviv (2014) não é um room with a view, mas dois
sofás que formam o “pátio”. Cini desenhava centrifugamente o centro – ou
permitia que os seus utilizadores encontrassem o seu centro.
II
O meu desencanto
digital agrava-se com a normalização da peste. Nas redes-sociais leio desabafos
de professores universitários de áreas artísticas, considerando que tudo o que ensinam
presencialmente podiam fazê-lo no digital. A partir das vinte horas, quem não come,
não bebe. Já me sinto alienígena ao respirar desmascarado em algumas ruas do
Porto. Na aula de Tai Chi há gente mascarada. Não me consigo (des)con-centrar. A
Suécia falhou com os mortos, mas venceu com os feridos. No pátio do centro-de-estudos
da minha rua as crianças brincam como em dois mil e dezanove. Algumas têm um
pano no queixo. O que é um centro-de-estudo? O pano no queixo é mais tolerável que respirar. Temos de escolher bem a companhia
para almoço – três. No Porto, as escolas distanciam-se todas a menos de trezentos
metros. O Porto é uma grande escola.
III
Se o Serpentone
(1971) me permitiu chegar há uma década à Cini Boeri, também me fez,
envergonhadamente, reconhecer o meu desconhecimento sobre clubes nocturnos. Nada
de equipamentos democráticos para sentar. Pista livre para as massas e
poltronas na VIP para as outras massas. A dupla dimensão da “massa” aprendi com
Vítor Silva Tavares, o editor que nunca quis ter nada a ver com massas. Não o
conheci por um obituário, mas pouco faltou. As discotecas de Berlim tornam-se
galerias de arte na peste. O Serpentone é anti-higiénico e como tal,
anti-ético. Nada de partilhar. Todos somos Casa Bunker com um pequenino pátio de
contacto – ecrã digital para muitos.
IV
“At the beginning of the
seventies, Architect Cini Boeri revolutionized the furniture market with her
revolutionizing modular sofa, Strips. Strips now belong to the
history of Arflex as one of their most famous products. In 1968, Strips was
awarded the prize Compasso d’Oro and was displayed in museums around the world.
The main characteristic of the sofa is its removable padded and quilted cover,
placed on a wooden frame. The sofa is shaped with polyurethane in differentiated density, to
guarantee the best comfort of the seat.”
V
O Strips Sofá transforma-se em cama, mas que bom sofá não é também uma deliciosa cama? A qualidade de
um sofá define-se não pela possibilidade de permitir-se ao sono, mas pela capacidade de segurar um recipiente de líquidos, desde o cliché urbano-decadente
copo de whisky ao início da noite, até à vulgarmente cosy caneca de leite
morno ao final da mesma. O meu sofá quis ontem levar-me por um filme espanhol,
Diana (2008) de Alejo Moreno, uma psicose entre putas de luxo e planos de arranha-céus dos mercados visto de-baixo. A acompanhar? Um copo de água, pousado sobre uma pilha de
revistas francesas de decoration. Porque o meu sofá (cama) afinal não é
assim tão bom - nem a minha escolha de filmes, de líquidos e de mestres.
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