23.09.2020 Interessa-me particularmente a paranoia VII
I
Dias de desalento. Passada a novidade eufórica
e seduzida a esperança, cabe ao desalento ocupar-se do espaço pandémico
colectivo. A peste já enche espaço material para além do digital. A sempre
prosaica melancolia não se digna a aparecer hoje? É suficiente - o momento de
troca - como passagem de testemunho. Sai o desarmado desalento, entra a
melancolia criativa. Substituição. Processo de recuperação sem intervalo.
Fulminante. Sai o desarmado desalento, entra a melancolia criativa. Mas o
desalento é lento e de ambíguo auto-reconhecimento; e a melancolia nenhum raio
súbito de cura, senão mero processo preguiçoso de ir de ali para aqui e aqui se
ficar. Sou melancolia e estou muito bem, obrigado por perguntares. Há sete
minutos era desalento numa procura entretida. Há dias em que perder tempo quer
mesmo dizer tempo perdido.
II
E hoje, não vais
citar nada, não? Tenho de me organizar. Com a regularidade com que escrevo
textos, preciso da minha própria base de dados, não é? Isto da memória aos
trinta e seis. E depois há a inercia, o levantar, o pegar no livro, o encontrar
a posição certa sobre a mesa, a dúvida: segurar com uma mão e martelar com a
outra; colocar um peso desajeitado sem dobrar, rodar a cabeça, acertar na
vírgula no sítio certo ou simplesmente sonegá-la. Ninguém vai confirmar, pois
não? A menos que saibas de cor uma passagem. De cor - dos tempos em que a
memória estava no coração. E não está? Depende da tua memória?
III
A obrigatoriedade mascarada a tempo-inteiro
está por horas. Neste preciso momento, cinco jovens da escola da minha rua
transportavam o pano sob os queixos. Minutos antes uma médica repetia a
façanha. Há professores das Belas-Artes do Porto a viajarem desalentados de
Comboio de Coimbra dar uma aula zoom para um auditório vazio. E depois voltam
pelo mesmo caminho, desalentados também. Não há redenção melancólica na linha
férrea. O 3D já venceu a fotografia. A inércia já venceu o movimento. A cadeira
do café onde me sentei no Domingo ficava a meio metro da porta. Mascarei-me
para me sentar. Tens uma lista de pessoas com quem falas desmascarado? Qual é o
teu critério? Lista 1: pessoas com quem falo sem máscara. Lista 2: pessoas com
quem falo com o nariz de fora. Lista 3: pessoas com quem nunca falo porque
gosto pouco de pessoas.
IV
Um erro de interpretação da realidade é uma das
definições de paranoia, como por exemplo: achar-se que viver no mundo digital é
progresso. Ainda à volta com as definições com o pessimismo antropológico a
poluir as tentativas de salvação. E hoje, não há citações? Hoje não, só
paranoia.
V
Ao final do dia, um filme sobre a metódica
sobrevivência de sete irmãs gémeas em tempos distópicos de política de filho
único e de sobrepopulação; e o Willem Dafoe. Já não leio há uns dias. Ainda ando a mastigar o
Dillon. Hoje estou particularmente a sufocar com o disfarce de hipocrisia que
todos usamos. 0,7% dos meus concidadãos passaram legalmente pela peste. Quase
setenta mil. No espaço de um ano, o mesmo número de habitantes alistou-se no
desemprego. É ela por ela se os números estivessem correctos. É uma questão de
perspectiva e outras ficções sociais. Qual é o número da população digital?
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