25.09.2020 Interessa-me particularmente o papel I
Sou culpado. O
populismo diverte-me. Consumo toda e qualquer notícia sobre as suas variedades regionais
e globais. Apresento a minha responsabilidade, mas continuarei irremediavelmente
a alimentar o meu entretenimento penitente. Não o conseguimos evitar, não é? “A
comunicação social está fascinada” foi o mote do Daniel Oliveira
este fim de semana no Expresso, enquanto acto de contrição. Por minha culpa,
minha tão grande culpa. Um inevitável guilty pleasure que alimenta o monstro.
II
Há quanto tempo
não folheio um jornal em papel? As entrevistas comemorativas das 2500 edições
do Expresso levaram-me a percorrer, durante toda a semana, um determinado período
nos finais da infância, onde a grande mesa transformer da sala de jantar, se esticava para acolher em dignidade, a volúpia
informativa do papel. Notícias para os adultos, artes e sociedade para a criança
e o caderno de economia, quem sabe, para limpar os vidros. A memória é a mesma
para todos, dispensa-se o eco. A minha liga-se, contudo, também a um grande tabuleiro
de xadrez em madeira completado por umas autoritárias e pestilentas peças em
metal que não deixavam os dedos descansar no final de cada jogo. Talvez
aprender a ler os jornais dos adultos tenha qualquer coisa a ver com um jogo de
xadrez. E talvez a pesada mesa hereditária que tudo recebia, também.
III
“Graças à
paranoia hipocondríaca e securitária criada pelos média e pelos políticos do
centro democrático, o cidadão normal está cada vez mais parecido com o
nacionalista típico, desconfiado, agressivo contra o estranho, conspirativo,
com medo, muito medo, um medo que se torna conspirativo, gasoso, impreciso e,
por isso, omnipresente”. Gosto desta ideia dos dias de hoje, do outro enquanto ameaça médica, que nos apresenta Henrique Raposo.
IV
Nunca aprendi a
jogar xadrez por falta de adversário. Para um filho único, o eu é o seu próprio
primeiro-inimigo. Perder e ganhar, uma mesma realidade. Há quanto tempo não
folheio um jornal em papel? Os livros e as revistas resistem. Como o cinema. Mas
o jornal não. Há pilhas de Ípsilon no meu sótão à espera que a tesoura leve a
melhor sobre a digitalização. Mas o Ípsilon é uma espécie de revista coleccionável.
O Jornal não.
V
Quis em sorte,
que o meu Jornal de adulto não fosse o Expresso. Quer em sorte, que mal sei
jogar xadrez. Planos para a velhice: retalhar os Ípsilon da Sílvia reduzindo
a pegada de lixo para a descendência, enquanto se aprende a jogar xadrez.
VI
Há quanto tempo
não folheias um jornal em papel? Há aquelas simulações, não é? De vez em
quando, quando te lembras, consultas a versão PDF a procurar hierarquias,
narrativas, cadências, dimensões. Quanto mede um jornal? Qual é o tamanho da
letra? A que cheira, um jornal em 2020? Cheira a medo?
VII
Mas o que é que
eu andei a fazer entre 1988 e 1995, nos anos de ouro do Independente? Provavelmente
a ler os livros do Miguel Esteves Cardoso e do Pedro Paixão e a sonhar com a
decadência humana, as mulheres e outros amores. Ainda bem que não lia O Independente e não me tornei conservador como eles. Para já. Melhor que o ambiente de uma redação de um jornal, só mesmo um atelier de arquitectura. E assim se sonhava nos anos 90. Colectivamente. Anos de papel. Da arquitectura e do jornal.
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