02.10.2020 Interessa-me particularmente o papel II

I

Então, não tens escrito nada? Parece, não é? Quando não publicas. Pois, mas depois, entram as definições: quando é que escreves? Há aquelas fábulas que são personificadas por quem bem entenderes: consta que o Leonardo (contaram-me a história assim, mas não me identifico com génios, vou trocar), consta que o Jean Fouquet, por exemplo; mas podia ser outro, sei lá: o Diogo de Torralva estava um dia no seu estúdio quando visitado pelos seus encomendadores, que o viram sentado, inerte, melancólico e quem sabe, desprovido de papel - imaginemos o nosso amigo Diogo como o filósofo do Rembrandt, em meditação, num vão de escada sépia. Fantasiemos também a pergunta que, dependendo da confiança, poderá ser qualquer coisa como: “Então pá, não fazes nada?”

II

Mas a pergunta certamente foi outra, porque - não podemos esquecer - havia dinheiro envolvido: “Então pá, já fizeste o trabalho? O prazo está a passar e nós estamos a pagar!” Cumprir prazos e justificar pagamentos é desde tenra-idade da nossa civilização uma virtude – tal como, virtude é, antes de ouvir a resposta, deixar o aviso: “Hoje vais sair? Leva um casaco, que é capaz de ficar frio lá para o início da noite”. Como o Miguel Esteves Cardoso não escreve há meio mês, dá-me para isto. “Que assim possas imitar deus, dentro dos limites da tua capacidade”.

III

Moral da história? Nem tudo o que parece é, caro Miguel, o que em coisas de artes e letras é ainda máxima mais urgente Quanto custa aquilo que fazes? O problema é maior: chamarem trabalho a isto das artes e letras. Quanto custa a palavra e o risco? É mais caro um risco demorado ou uma palavra rápida? Pois as tarefas que me interessam particularmente são as do papel.

IV

Porque isto das definições do trabalho, dizem-nos, é uma actividade “regular e remunerada”, deixando-se militantemente de fora a escrita ocasional do anarca nas horas vagas da tipografia que o ensinou a ler - nem regular, nem remunerada – assim como a tarefa do carregador de desejos do paladar (e outras excentricidades) às costas, arquétipo da nova escravidão - pomposamente regular demais e remunerada de menos.

V

Já acabaste a história? Não. Portanto, o nosso herói terá então respondido qualquer coisa como: “Enquanto aqui estou, sem nada fazer - como vós dizeis - é quando o trabalho está a ser desenvolvido. Quando sobre o papel me debruçar, só o estarei a comunicar, a vós, que não o percebeis”. Claro que a história não era esta, mas não anda longe. A memória escondo-a, como qualquer outro, atrás de sublinhados, papelinhos autocolantes a marcar a página e demais copianços digitais de paste utilíssimo para momentos de parca ficção, como não é o caso.

VI

Com o papel cada vez mais reduzido, em desonra, a utensílio de limpeza após gozado festim, resta-nos aprender nas re-postagens das redes sociais: “não esperes o que não comunicaste (claramente)”.  Se as tarefas que me interessam particularmente são as do papel e estas, imensuráveis, então faça-se, ao menos, como o arquitecto (ou o homem sentado) de Roger de La Fresnaye e tenha-se sempre uma grande folha de papel ao lado, que é como quem diz: “ao menos, pareço ocupado”.

 

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