06.10.2020 Interessa-me particularmente a melancolia
I
Sessenta por
cento do mundo está “apático e desmotivado” segundo as estatísticas. Dois
sentimentos contraditórios. Se a apatia é a “ausência de interesse ou de
resposta a um estímulo” e a desmotivação contempla um estado sem motivação,
consequentemente “sem motivo”, concluímos que um apático apenas mostra
desinteresse pelo estímulo / motivo, enquanto o desmotivado não o tem. Há, ou
não há motivo? Uma simples questão que divide o apático do desmotivado. Há, ou não há futuro?
II
Quer-nos o século vinte e um, demonstrar, que o futuro ficou no milénio anterior
- com as suas visões, utopias e demais projecções de sublime felicidade (alcançada apenas depois da mudança) perdidas na cristalização da grande despesa. O que há de
novo para o futuro? Nada. Nem o passado nos servirá. Um futuro digital e
desumanizado, sem toque e sem cheiro. É o desencanto e não a desmotivação. É a
desilusão e não a apatia.
III
De um lado, a
peste infectada num Conselheiro de Estado, foi neutralizada com o cumprimento das
boas práticas de respeito; do outro, um homem poderoso exige que não se tenha
medo da peste, pois saiu ileso de feridas e mortes. Quis em sorte esta
geografia. Por cá, precisávamos de menos medo; por lá, de mais respeito pelo
outro (e as boas práticas). Uma troca geográfica de acontecimentos teria tido outro benefício pandémico. Pouca sorte.
IV
O melancólico
existe para contemplar
“a sua fragilidade humana e finitude intelectual”. O apático não serve
para nada. E o desmotivado não é um bom consumidor. Dêem motivos ao desmotivado (para consumir ou para consumir-se) e melancolia ao apático para se culpar pela procura. Mas deixem o melancólico em paz, pois ele, a paz, já não alcança.
Quanto ao tédio é outra-coisa. Não nos entediemos com isso, porque aqui só interessa
pesquisar como o apático se há-de melancolizar.
V
Será que o jovem
Beniamíne (como articula a Filomena Molder) ou outro melancólico famoso, quando
se levanta pela alvorada, está já nutrido de toda a sua plenitude melancólica?
Ou o pelo contrário, desperta-se apático, desencantado, desiludido ou
particularmente desmotivado – entre outros contraditórios – socorrendo-se de um
processo, ritual metafísico ou reza para se teletransportar para a dimensão
melancólica? Precisará, o pleonástico jovem Benjamin, de uma espécie de simbólico túnel, que conecta a apatia (do lado de cá) com a melancolia (do lado do desejo)? Um portal em
perfeito des-equilíbrio entre o passado e o futuro?
VI
“The tunnel symbolizes the road
that leads from the underworld to the world through light. My work should be
interpreted as a guideline for a better future”. Herbert Hamak, o-da imagem
VII
Como se pode
escrever sobre a melancolia sem uma única referência à bílis negra, ou a Durer? É
porque não se falou, afinal, da melancolia. É porque não se está, afinal, melancólico. É porque
não se trespassou ainda, hoje, de tarde, o pórtico. Talvez mais ao final do dia,
quem sabe? Ainda temos tempo, não é? Ainda nem acabámos de construir o pórtico
para a cura. Ainda temos tempo, se tivermos sorte.
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