15.10.2020 Interessa-me particularmente a paranoia VIII
I
“Então pá. Paris
já está em curfew. E por aí?” As nossas mensagens parecem-se cada vez mais
com as ficções apocalípticas dos anos 90 a que chamávamos cinema. Hoje (ainda)
chamamos cinema a outra-coisa (do passado). Deu-me algum orgulho envenenado
usar o inglês, curfew: como nos filmes - nunca o tinha dito em contexto
real. Recolher obrigatório. Como é que está isso por aí? Por aqui as obrigações
são facultativas e as sugestões auto-impostas. Curfew – nunca o pensei usar
em contexto real. Ainda bem que (ainda) não fui morar para Paris.
II
Uma noite destas
fui ao cinema. Ainda há cinemas. Jantei em casa porque tinha excesso de tempo,
falta de dinheiro e falta de vontade; percorri 10 minutos de cidade; encontrei
10 pessoas mascaradas na sala; saí e no regresso, não encontrei ninguém. Já foi
implementado o recolher obrigatório no Porto? Não se vende álcool solitário depois
das 20h. Em Coimbra, um café da praça da República vende finos obrigatoriamente acompanhados de pequenos
pacotes de batata frita. A Academia ficará obesa. Há torniquetes ladeados pelos
painéis do Almada nas Matemáticas. Há torniquetes na Academia: “cruz móvel,
que gira em tono de um eixo, usada para condicionar a passagem”. A Academia, obesa e acrítica, encolhe-se para passar nos torniquetes.
III
A geração melhor/mais
bem (devem as línguas evoluir?) preparada de sempre respeita,
acriticamente, as regras de dia e desrespeita, acriticamente, as regras de
noite. O que é a preparação? A Academia prepara-se para se tornar uma dependência
do Youtube. Nas lojas de souvenires dos Museus não se podem folhear os livros –
enquanto algumas editoras online permitem a leitura integral dos inícios. Crítica: “capacidade de julgar” (o
dicionário não ajuda muito aqui – a crítica autocensura-se na sua própria definição).
A multidão acrítica e baralhada começa a consentir todo e qualquer controle. “O
Governo vai colocar todas as autoridades policiais a fiscalizar os portugueses
que, tendo telemóvel, não tenham instalada a aplicação”. Todos queremos
umas mini-férias pagas de 10 dias. Isso e a passagem do tempo.
IV
“Mas
um velho, de aspecto venerando/ Que ficava nas praias, entre a gente/ Postos em
nós os olhos, meneando / Três vezes a cabeça, descontente/ A voz pesada um
pouco alevantando/ Que nós no mar ouvimos claramente/ C'um saber só de
experiências feito/ Tais palavras tirou do experto peito:”
V
“O
Governo vai colocar todas as autoridades policiais a fiscalizar os portugueses
que, tendo telemóvel, não tenham instalada a aplicação”. Os jovens só serão
vacinados em 2022. Máscaras, apps e curfew turístico (o económico, o deluxe
far-se-á) até 2022. Previsões de hoje. A Declaração de Great Barrington
e o seu contrário. A Suécia continua a lavar as mãos. Por cá não. As máscaras e
as apps são mensuráveis. Como fiscalizas a higiene das unhas? Tens lavado as
mãos? Bebes água? Veste um casaquinho que à noite faz frio: se puderes sair,
claro. Se não puderes, põe uma mantinha nas pernas. É só uma sugestão. Há
sempre livre arbítrio, principalmente na escolha da série da plataforma de
streaming. O que vais fazer durante o curfew? Resistir, subverter,
conservar e/ou duas temporadas de rajada acompanhadas de leite quente e bolachas com compota?
VI
No
episódio de ontem do Atentado, dois anarquistas entregaram-se à PVDE
pela tentativa de assassinato do ditador. Os anarquistas e as bombas, sempre.
Vamos continuar com este cliché? Deixas? Ainda vejo as séries na televisão. A
espera. Um episódio por semana, à hora do sono. Como se põe uma bomba e simultaneamente
se respeita as regras (e as sugestões). A Resistência Crítica. Só pode. Só resta.
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