23.10.2020 Interessa-me particularmente a paranoia IX

  

I

“O que está fazendo? Estava esperando um pensamento chegar. E chegou?” Em Pendular (2017) ela diz esperar por um pensamento, ele pergunta se chegou. A motivação da espera é tão bela quanto a espera. Espero por um pensamento. E vai chegar? Espera-se por um pensamento, ou espera-se só. Prognósticos: Para a semana estaremos mascarados pelo dia e aprisionados pela noite. A hora vai mudar para que as crianças acordem já de dia. Era uma metáfora? Não, mas repito, a hora vai mudar para que as crianças acordem já de dia. Então era só ironia? Em Paris, os cidadãos assemelham-se àqueles criminosos de pequeno delito que dormem na prisão e só saem para trabalhar. A diferença? Em casa estamos mais controlados, em rede. Para a semana a máscara será obrigatória por aqui. Lavar as mãos é desapropriado e o distanciamento indesejado. Se só cumpres um terço da santíssima trindade da higiene, estás à espera que a peste te contorne?

II

O que estás a fazer? Estou á espera de um pensamento. Ele e ela no filme, sem nome, falam-se pouco e não comunicam. Sete pessoas na sala de cinema, poucas mais pela cidade. O ritual repete-se a cada saída em horário escurecido (e vai mudar a hora; entre outras obrigações). Alguns restaurantes (onde a timeout chega em massa) continuam lotados. Os outros vazios, esperam a vacina chegar. O Porto, à noite, parece uma zona de guerra, à espera da guerra chegar. A hora vai mudar para que as crianças acordem já de dia. Fica mais noite para a noite.

III

Soluções arbitrárias para verdades conhecidas: não há nada que possas fazer que resolva o problema, habitua-te. Sê civilizado durante a peste. Nem a santíssima trindade da higiene pandémica te safa. Fecha-se onde se pode, mascara-se onde se deve, lava-se as mãos. Não era uma metáfora?  “Lavo minhas mãos em sinal de inocência e, assim, poderei andar ao redor do teu altar, ó Senhor” (Salmos 26:6). O Professor tornar-se-á o novo símbolo da resistência. Um mártir pela laicidade. Dégueulasse é parecido com degolado. Gosto dos tempos dos filmes. O Pendular tem 108m. Acaba e depois continua connosco. As séries nunca acabaram, mas também nunca continuam em nós. Há que resistir. Há que aprender a ler. Ainda não assinei a HBO. “Não sou muito dado às massas nem as massas”. A dupla dimensão da massa por Vítor Silva Tavares. A massa está na rede. A dupla dimensão da massa está na rede. A cidade resiste, em espera, em guerra. A laicidade resiste, sem cabeça. Agora sim, talvez fosse uma metáfora.

IV

“Ils seront citoyens et ils doivent savoir ce qu’est une démocratie libre, quels droits leur confère, quels devoirs leur impose la souveraineté de la nation. Enfin ils seront hommes, et il faut qu’ils aient une idée de l’homme, il faut qu’ils sachent quelle est la racine de toutes nos misères : l’égoïsme aux formes multiples ; quel est le principe de notre grandeur : la fierté unie à la tendresse. Il faut qu’ils puissent se représenter à grands traits l’espèce humaine domptant peu à peu les brutalités de la nature et les brutalités de l’instinct, et qu’ils démêlent les éléments principaux de cette œuvre extraordinaire qui s’appelle la civilisation. Il faut leur montrer la grandeur de la pensée ; il faut leur enseigner le respect et le culte de l’âme en éveillant en eux le sentiment de l’infini qui est notre joie, et aussi notre force, car c’est par lui que nous triompherons du mal, de l’obscurité et de la mort.” Jean Jaurès.

V

E amanhã? É capaz de chover. Vou ficar em casa e assim lavo as minhas mãos. Era uma metáfora? Sei lá. “Cette œuvre extraordinaire qui s’appelle la civilisation”. Onde é que isso fica? Não sei, estou à espera da civilização chegar. Nós por cá já nos desinteressámos de nos civilizar. Gosto desta ideia de civilizar. É um bocado, paternalista, não achas? Sim, mas ao menos é laica e quem sabe se assim as crianças não vão poder acordar já de dia. Bem, vou indo, que vais ficar a fazer? Fico esperando um pensamento chegar.