26.10.2020 Interessa-me particularmente a paranoia X
I
Querido diário:
por aqui, na Europa, já só saímos para trabalhar. Lembras-te dos gregos? Como é
a versão simplificada que chegou aos nossos dias: mente sã em corpo são. Querido
diário: fecharam os cinemas, os teatros, as bibliotecas e os convívios pagãos
com música e comes-e-bebes. Querido diário: fecharam os ginásios, as piscinas e
os centros de beleza e estética, seja isso matéria da filosofia ou da decoração
facial. Ambas são altamente reprováveis e combatidas criminalmente. Querido
diário: divertimo-nos a escolher séries de catálogos finitos e produtos de
catálogos infinitos. O divertimento em rede mede-se a scroll. Querido diário: A
Europa civilizada levanta-se para trabalhar e regressa a casa (ou à parte de
cima do pijama) no final da jornada. 8 horas de trabalho. 16 horas em casa.
Mais coisa menos coisa é isto. Generalizando, como não se não deve, claro. Particularizando,
aqui e ali ainda se pode jantar fora, desde que cedo, ou muito cedo, ou à
americana. Querido diário: o que eu me vou rir disto daqui a uns anos. Fascinante
esta peste, não achas?
II
É quase-oficial. Só
faltamos nós. Espero a inscrição no Diário da República, mas até lá, já me
sinto criminoso. É preciso lata para cumprir a lei. Olha-me este, sem máscara,
como diz a lei! Sinto-me do lado errado do mundo, mas ajo da forma do mundo certo,
não vá os errados estarem mesmo errados (e os certos também). Nunca se sabe. Só
sei que não me apanham em certezas, ora essa. Antes errante que errático, não?
III
O mundo
entrega-se a fait-divers nas horas vagas. 8 horas de trabalho. 16 em casa.
Procuro ID´s do zoom perdidos para assistir a aulas. Infiltrar-me na universidade
das redes sociais. Os alunos de cinema perguntam para quê estudar se não os
deixam fazer filmes. A Igreja procura novos públicos. Talvez os mesmo do cinema.
Já disse que mudou a hora? Mudou a hora. Ninguém gosta. Muda-se a hora para as
crianças acordarem já de dia. Gostei da minha metáfora da semana passada, vou repeti-la.
Hoje, acordei cedo demais. Demasiada luz. O
despertar das trevas quer-se gradual. Luz pela manhã para ir trabalhar; penumbra
no regresso ao pijama. Que série vais ver hoje? Não vou resistir muito mais. A
HBO pressente que sou fraco e tenta-me no meu longo deserto. Catorze dias
grátis, vou esperar a minha quarentena para pecar.
IV
Tem tudo a ver
com o fim, sabes? Gosto de saber o fim, para continuar depois do fim. Se não
tem fins, estás a fazer o trabalho deles de graça ao imaginar o resto. E é tão
previsível, não é? Dúvida: Se fores convidado para jantar (tarde) em casa de um
amigo, podes transportar a cordial garrafa de vinho pela rua? Para a Lei de uso
e porte de arma: “No domicílio, a lei exige, no mínimo, a aplicação na arma
de cadeado ou outro mecanismo que impossibilite o disparo.” A rolha
funciona como cadeado: podes transportar. E a máscara? Desde que a tenhas à
mão, pois dá sempre para alegar distanciamento social. Mas tem-na à mão. Nunca
se sabe quem encontras à noite. E se estiver frio, não te esqueças que a máscara
dá uma falsa sensação de calor. Usa cachecol a condizer. Não estamos em alturas
de férias de catorze dias para ver séries na HBO.
V
Querido diário: por
aqui, questionamos como será o Natal. Fala-se em guerra civil. Querido diário:
o homem mais rico do mundo desistiu de ir à lua, distribuiu a sua fortuna -
igualmente, diga-se - por todo nós humanoides, durante catorze meses, espalhou
vacinas e ainda ficou mais rico do que antes? Como, sei lá, mas parece que é
possível, é fazer as contas, sabes fazer? Não. Pois, devíamos saber, não era?
Vai lá ver a tua série. Querido diário: somos colectivamente tão fracos e
individualmente tão demissionários.
*imagem: Thicket No.1, Roni Horn


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