02.11.2020 Interessa-me particularmente declarar
I
Cidadão, o que
anda a fazer na rua? Sábado à noite, na vinda do cinema, dois tipos de
mascarados pela cidade. Poucos de cada lado. Senhor Agente, estou a caminho. Pacifiquei-me
com as máscaras: está frio, dá jeito. Imagino minutas de declarações para
passar a ponte sobre o douro. Um arquitecto tem sempre obras, reuniões e
escolhas tácteis para fazer: Senhor Agente, declaro: sou arquitecto, vou em
trabalho. Tácticas para passar a ponte? Senhor agente, declaro: tenho uma marca, vou produzir
tábuas de cozinha ao subúrbio. Senhor agente, declaro: sou um pensador, vou a
pensar. Alto. Cidadão, isso deve ser febre.
II
Três da tarde,
não se ouve nada. Nem rebarbadoras, nem gritinhos histéricos em língua estrageira.
Eram estes os sons da cidade. Senhor Agente, importa-se que pense? Ora essa
Cidadão, desde que parado, isso não é desculpa para andar na rua. Declaração de
circulação: Eu, abaixo assinado, ando na rua, sem destino, vou a pensar e
desmascarado, porque estimo não encontrar ninguém. E a bem dizer Senhor Agente,
quem não procura também não encontra.
III
O Ferreira Gular
dizia que “a arte existe porque a vida não basta”. Só o queria registar
para não me esquecer. Anda fraca a vida; fica a arte. Há um ciclo de cinema do
Buñuel no Filmin. Já esteve no cinema há uns meses. Sábado à noite a sala
estava “cheia” - definição de cheia em tempos de peste: dois sim, três não,
vista desimpedida. Para um baixo, uma sala de cinema em tempos de peste é sempre
mais agradável. Cidadão, o que anda a fazer? Novas regras: na rua só a
circular. Cidadão, porque anda na rua? (vou a pensar) Fui comprar uma raquete
de pingue-pongue Senhor Agente? Sò uma? Não tenho com quem jogar, Senhor Agente. E onde está? Não gostei, só tinha em verde.
Deixe-me cá ver se o Cidadão está febril. Estamos todos, Senhor Agente, estamos
todos.
IV
Oitenta e um por
cento dos portugueses é a favor do recolhimento obrigatório. Dezanove são contra,
mas por acaso estão voluntariamente distanciados uns dos outros. E lavaram as mãos e os olhos. O treinador-adjunto duma equipa qualquer na televisão estava de “óculos
de proteção adaptado para lixar madeira, metal, pedra e trabalhos de jardim.
Leves e elegantes com revestimento rígido e resistente a riscos. Oferta: filtro”.
Tudo por 6,99€ em loja online, claro. O treinador-adjunto sabe que a peste pode
entrar pelos olhos. Cidadão, porque não está de óculos de protecção? Ora essa Senhor
Agente, era mesmo isso que me fez sair de casa: vou a uma loja de rua à procura
de óculos de protecção. Deixe-me cá ver se o Cidadão está febril. Estamos
todos, Senhor Agente, estamos todos.
V
Tens febre? Não,
medo! Já andas nisto há nove meses e ainda tens medo? Ontem vi um estafeta com
três caixas da amazon. Hoje não tive clientes. Outra-vez? Vou ter um online,
estou só há espera que pague para chamar o estafeta: “agente de transmissões da
unidade de infantaria, encarregado do transporte e entrega de mensagens”. Cidadão,
porque quer passar a ponte? Sou estafeta, Senhor Agente, vou a transportar uma
mensagem. E qual é a mensagem. Não se preocupe Senhor Agente, ninguém a quer
ouvir. Passe. Espere aí, espere aí. Deixe-me ver se tem febre. Temos todos
Senhor Agente, temos todos.


Comentários
Postar um comentário