11.11.2020 Interessa-me particularmente a paranoia XI

 


I

O cadáver da cidade, desvitalizada. A cidade está vazia, o metro não. Os corações batem sobre carris. Do trabalho para casa; do hospital para casa; do supermercado para casa. Daqui para ali. Circular é preciso. O que isto me diverte. “Curfew – nunca o pensei usar em contexto real. Ainda bem que (ainda) não fui morar para Paris.” Afinal, nem um mês depois e já temos o curfew por aqui. Há treze excepções, nenhuma permite a cidade, só um seu simulacro cadavérico. “O resto do mundo será convertido em deserto, por culpa dos seus habitantes, como resultado da sua maldade.” (Miqueias 7:13) Qual maldade? O absurdo instalou-se oficialmente, a pedido. Os últimos dias passados em revolta interior. Medidas arbitrárias, inúteis, inconsequentes e ignorantes. O absurdo instalou-se oficialmente, a pedido dos cidadãos, acríticos: que aplaudem qualquer coisa, porque é sempre preciso fazer qualquer coisa, e qualquer coisa é sempre melhor que nada.

II

O Velho-Continente parece libertar-se do seu “palato delicado”. Onde anda a resistência? Não encontro a cidade que aprendi a gostar. Diógenes procurava um homem, eu procuro uma cidade. Há treze excepções, nenhuma permite vida na cidade. No Domingo, vamos tentar não adormecer. Dormes, perdes a réstia de vida. Na recente dicotomia saúde-economia esqueceram-se da vida. Quem tem trabalho, (só) trabalha; quem tem saúde, (só) trabalha – ambos não têm vida. O absurdo toma conta dos dias. Os cidadãos aplaudem, acríticos. A vida esvai-se, a pedido. Deus, os estados e os mercados. Onde anda laicidade e a resistência do Velho-Continente? Diógenes procurava o Velho-Continente.

III

Rubens não podia representar o suicídio, os romanos sim. Séneca a morrer, do século II. Só o contaste do corpo em mármore preto com o lençol dourado conseguem fazer esquecer Rubens. Uma lâmina de Nero Portoro ou a Descida da Cruz? Escolhas difíceis para decoração de interiores. Rubens não podia representar o suicídio nem a genitália. Chamou um médico e um pano, para cobrir o suicídio e a genitália. Os romanos não. Séneca, a morrer-se, dentro de uma taça do seu próprio sangue, um último suspiro de ensinamento espera-se: "olharei a morte com o mesmo ânimo com que tenho ouvido falar dela". Um lençol retorcido dourado como extensão da coluna puxa Séneca para o sangue. Um lençol retorcido dourado focaliza-lhe a nudez. Séneca morreu nu, exposto. Rubens vestiu Séneca. A Peste veste-se de absurdo.

IV

Onde anda a resistência? O controle tomou conta (controla) do absurdo. No Novo-Mundo os estabilizados ganharam. É melhor que nada, repete-se. O bom-gosto ganhou à boçalidade – mas foi só isso – e já não é pouco. Os muros continuam. Trocaram de adereço. “Investigadores querem testes alargados a quem tem dor de cabeça e obstrução nasal”. Acho que já nasci com peste. Por cá, legitima-se a boçalidade na ilha a troco de umas moedas.  Sempre a copiar, e sempre tarde demais.

V

Foi tudo dito cem vezes / E muito melhor do que por mim / Pelo que quando escrevo versos / É porque me diverte / É porque me diverte / É porque me diverte e cago-vos no nariz” Boris Vian.

Comentários

Postagens mais visitadas