17.11.2020 Interessa-me particularmente a sorte II
I
“Nenhum tipo
de encontro é permitido nem entre amigos, nem entre familiares alargados, mesmo
dentro de casa”. Herbert e Faye telefonam-se, sem câmara. “Os encontros sociais
estão limitados a duas pessoas, se forem de diferentes agregados familiares”.
Herbert e Faye não são agregados. “Estão encerrados museus, teatros,
cinemas, jardins zoológicos e parques de diversões.” Herbert confia no
algoritmo para se cultivar. Faye gosta de ler. “É necessário pedir
autorização às autoridades de saúde para sair de casa, enviando para o efeito
uma mensagem”. O telemóvel de Faye caiu. Herbert comprou-lhe um,
online. “Zonas vermelhas, laranja e
verdes: assim se encontra dividido o território”. A zona de Faye é azul.
Herbert é daltónico. “É proibido dormir em hotéis se não for por razões
profissionais”. Herbert está desempregado. Faye nunca dormiu num hotel. “Todas
as viagens consideradas não essenciais foram desaconselhadas”. Faye gosta de ir
ver o mar. Herbert não sabia.
II
Por volta de
trezentos antes do tempo que começámos a contar o tempo, nas suas Sentenças
Vaticanas, Epicuro sintetizava a coisa: “não passar fome, nem sede, nem
frio; aquele que dispõe disso e está seguro de o continuar a dispor, pode
também disputar a felicidade.” Quanto é que deixamos (colectivamente) de
procurar a felicidade (para o outro)? Quando é que começámos colectivamente a
procurar a felicidade para o outro? Resposta 1: nunca; Resposta 2: amanhã.
Herbert espera pela resposta, está desempregado. Faye não sabia que havia uma
pergunta porque nunca tinha conhecido um desempregado.
III
Faye está pronta
para disputar a felicidade. Herbert ainda não. Herbert, já o dissemos, está
desempregado. Os desempregados não podem disputar a felicidade pois não estão
seguros de continuar sem fome, sem sede e sem frio. Faye pergunta a Herbert se
quer metade da sua salada de atum. Herbert é orgulhoso e ainda recebe subsídio
de desemprego no próximo mês. Faye pergunta a Herbert se quer as suas ceroulas
em malha. Herbert sente-se humilhado a vestir ceroulas de malha de Faye em
público. Mas Herbert pede água. Feye diz que não tem água pois há doze anos que
não pode viajar até ao mar. Herbert acha deliciosa a inocência de Faye.
IV
“Chego a esta
conclusão: o que é melhor e vale a pena é comer e beber, e cada qual gozar o
resultado do trabalho que se tem neste mundo, durante o pouco tempo de vida que
Deus nos dá. Esta é a sorte que nos cabe” (Qohelet 5:17). Herbert, já o dissemos,
está desempregado – tem pouca sorte. Faye tem mais sorte, mas não parece,
porque nunca dormiu num hotel. Herbert conta a Faye que há “pessoas boas que
morrem, apesar da sua bondade e criminosos que prosperam com os seus crimes”
(7:15). Faye não sabia, só lê livros de aventuras e vê séries de decoração de
interiores.
V
“Não são os
mais rápidos que ganham a corrida nem os mais fortes os que ganham a guerra;
não são os sábios os que têm pão nem os entendidos os que têm riqueza; nem os
instruídos são os mais estimados. Tudo vai da sorte que eles têm” (9:11).
Tempos complicados para a meritocracia, estes os do Rei Salomão que tanto correu
atrás do vento. Hiram Abiff e Imotepe concorrem com deus para o cargo de
primeiro arquitecto de sempre. Mas Imotepe deixou Sacara e Hiram não deixou
nada que se veja. Faye não sabia que havia arquitectos, só construtores e
decoradores dos programas da tv. Herbert, que conhece Sacara e o Templo das
imagens do instagram, mostrou a Faye que um arquitecto é tudo isso e mais
outras coisas. Faye gostava de ter tido a sorte de ser arquitecta.
VI
Herbert explicou
a Faye que era a morte e não a felicidade o fim da vida. Faye não sabia, porque
o que gostava mesmo é de ver o mar. Herbert e Faye não se vêem há doze anos, durante
o tempo da grande peste. Herbert ama Faye. Por nunca ter ido ao teatro, Faye
desconhece o amor. Ainda assim, Herbert tenta, porque cedo aprendeu o que o Rei
lhe ensinou: “Goza a vida com a mulher que amas, durante os curtos dias de
vida, que te são concedidos neste mundo. É aquilo que tu podes aproveitar da
vida e dos trabalhos, que suportas neste mundo”. (9:9) Herbert não tem
trabalho, mas tem Faye. Faye tem trabalho, mas não sabe que pode disputar a
felicidade.


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