20.11.2020 Interessa-me particularmente a sorte III
I
Herbert - a
nossa última personagem - está desempregado. Como bem sabemos, estar
desempregado é o mesmo que perder o emprego. Se a nossa personagem se chamasse
Matteo, e visto que teve o mesmo fim, já saberíamos contar o resto. Assim
limitamo-nos a prestar a devida vénia. Há muitas e boas razões para Herbert ter ficado desempregado, ainda
que todas demonstram inequivocamente uma tendência especial para a sua falta de
sorte. Herbert não só não nasceu em boas famílias, como não viveu no século
certo e na geografia precisa. Mas Herbert, apesar de tudo, lutou bastante por
aquele emprego, que não sendo bom, não era mau: pois não passava fome, nem
sede, nem frio. Melhor ainda, Herbert considerava o seu emprego seguro. Todas
as premissas somadas, permitiam a Herbert - de acordo com Epicuro - “disputar a
felicidade”.
II
Há uma frase menos
famosa - cuja obra já se perdeu o rasto - que diz mais ou menos isto: “devemos
ser pessimistas pela inteligência e optimistas pela vontade”. Romain Rolland,
o seu criador e António Gramsci, o seu difusor, dividem os louros ideológicos
de um aforismo de extrema utilidade para os nossos fascinantes dias: ainda que
desejemos a utopia, nela não acreditamos. Se na chegada à pandemia se pode comparecer
optimistamente iludido por uma hipótese de mudança, para a sua saída resta-nos
a céptica conclusão que qualquer esforço é inútil. Principalmente, quando
falamos de formas de salvação terrenas. E regressa-nos Séneca: “se não
encontrarmos a república que concebemos para nós, o ócio começa a ser
necessário para todos, porque aquilo que poderíamos preferir ao ócio não existe”.
III
Faye – que nunca
se interessou particularmente por política – no início da grande peste, foi dos
muitos cidadãos-consumidores que assinou várias cartas endereçadas ao estado,
todas como um só pedido: salvem-nos, ó grande-estado. Em sentido contrário,
abdicavam de toda a sua liberdade, não só a de opinião (que já era pouca) mas também a de movimentos (que também não era grande). Faye quis, sobre qualquer outra coisa
no mundo, fechar-se em casa, sozinha e mal informada, em contida e reprimida
espera, possuindo um único critério de locomoção: fazer-se obedecer. Claro está
que isto só aconteceu (em repetição) porque Faye, para além de política, nunca
se interessou particularmente pela história e os seus derivados, a saber: a arte,
a filosofia e/ou a religião e o tricot. Se ao menos Faye soubesse tricotar
podia substituir as suas ceroulas de malha que emprestou a Herbert no texto anterior
– sim caro leitor, porque isto não é um romance, gostamos mais de outras
categorias. E por não o ser, tricotar está apenas aqui, metaforicamente, para
explicar que Faye, para além de não saber pensar, mal sabia usar as mãos: o que
a tornou particularmente inútil e inapta nos tempos de peste.
IV
Com Herbert
desempregado e Faye igualmente inaproveitável socialmente, reconhecemos nas
duas personagens que tão simpaticamente criámos, uma total pertinência para o
decorrer da presente peste. Caros leitores, Faye e Herbert tiveram pouca sorte,
coisa que apesar das más línguas, não se procura, apenas se encontra - quando
calha.
V
Por estes
dias, na nossa república, todas as discussões terminam na sorte: aceitar a
sorte ou corrigir a sorte. De um lado acredita-se que se pode virar a sorte. Do
outro não. Há lugar para alguma coisa a meio? Talvez um espaço onde a “inteligência
pessimista” se cruza com o “optimismo” aspiracional e diz: tenho a certeza que não
vai dar, mas…
VI
Conseguirão
Faye e Herbert apender a sonhar no teatro de peste? Ou conformados, aceitarão apenas
a sorte que lhes calhou em sorte? Tal como os trailers dos filmes dos anos 90,
estas são as cenas para um próximo capítulo, porque afinal, talvez isto possa
ser um romance de capa dura e devidamente financiado para ocupar os melhores
lugares no escaparate social.


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