26.11.2020 Interessa-me particularmente a paranoia XII

 


I

Há uma frase extraordinária do Teixeira de Pascoaes que diz qualquer coisa como “sem uma concepção poética da vida, o nosso planeta seria apenas um refeitório e um cemitério”. Parece fácil resumir-nos: um refeitório e um cemitério. Há dez meses que o nosso planeta é apenas um refeitório e um cemitério. Demasiado tempo para a caricatura da manta curta: ora destapamos os pés, ora descobrimos a cabeça; e se por vezes nos envolvemos com a manta torta, continuamos cheios de frio – no corpo todo. Os pés são a economia e a cabeça é a saúde. Com a economia, caminhamos para o refeitório, com a saúde fugimos do cemitério. E mais? 

II

Dez meses de desvitalização. Gosto do conceito de desvitalização – usa-se no dentista (e os dentes, no sonho, ligam-se à morte). Desvitalizadas, as cidades, aproximam-se do refeitório de quatro em quatro horas. Desvitalizadas, as cidades, desunham-se para escapar ao cemitério. Em dez meses, um sonho humano que cumpre apenas o prato e o caixão. Só. E mais? Não há mais?

III

Nos Aliados, um trompetista toca uma música tristíssima. Eu gostava de perceber de música para reconhecer a obra. O trompetista gostava de perceber de música para tocar a obra. Tocava mal, mas era triste - e isso era suficiente - requiem de uma cidade desvitalizada. A sujidade das roupas do trompetista denunciava-lhe a classe social: esquecido, contornado, vítima desta e doutras pestes. O trompetista dos Aliados cedo aprendeu os caminhos para perto do refeitório e para longe do cemitério. O trompetista dos Aliados (ainda mais) cedo aprendeu os caminhos sinuosos da poética. A banda sonora de uma cidade desvitalizada é iluminada por um trompetista de roupas sujas. Há afinal poética na cidade – que é como quem diz, resistência.

IV

Quando os velhos (e os novos) deixarem de morrer da peste vão continuar a morrer - mas saem das estatísticas. De um lado o refeitório, do outro o cemitério, no meio uma vacina. As listas de salvamento começaram a ser desenhadas. Top 3 da vacinação: os velhos e os novos nos lares do estado; os heróis que cumprem o seu trabalho nas linhas da frente do estado; os deficientes institucionalizados em equipamentos subsidiados pelo estado. Top 3 da vacinação: salvar o estado da desonra.

V

Qualquer causa de morte é mais natural que a peste. O único café da minha rua fechou esta semana. Também servia refeições – não vingou como refeitório, dirigiu-se para o cemitério da economia para poder sobreviver no frigorífico. Chove na desvitalizada cidade refeitório-cemitério. O cidadão agradece ficar em casa. Ao menos não se molha. Ao menos não se constipa. E mais? Não  há mais Senhor Doutor?

VI

Há novas perguntas para os especialistas: Senhor Doutor, então e depois da vacina, vamos tirar as máscaras? Senhor Doutor, então e o medo? Tiramos a máscara, tiramos o medo, não é Senhor Doutor? Não acha mais prudente deixar o medo? Ai desculpe, enganei-me. Não acha mais prudente deixar as máscaras Senhor Doutor?  

VII

Do refeitório para o cemitério. A máscara enquanto símbolo do medo. A manta está curta – tapa com uma máscara que também aquece. Solução: tapa-se os pés com a manta e a cabeça com uma máscara. Cumpre-se a economia (abrem-se refeitórios), cumpre-se a saúde (fecham-se cemitérios). E a poética Senhor Doutor? E a poética Senhor Doutor?

 

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