02.12.2020 Interessa-me particularmente a resistência II

 





I

Jaume não gostava do lugar-comum, mas não hesitava sempre que precisava de um. Quando lhe perguntavam de que lado da barricada se encontrava, Jaume socorria-se sorridentemente de um cliché: sou um conservador de utopias e outras cidades imaginárias. Jaume, como os gregos, gostava de equilíbrios e como os gregos, gostava de não ser perturbado (mas aí mentia) - ou ainda: Jaume queria ser livre, até de sucessores. Jaume dizia entre-dentes, pelas esplanadas dos cafés e pelos foyers de teatros, que lutava pela preservação (quase ecológica) de um tempo às lascas. Dizia Jaume que na sua utopia-cidade, as mulheres se misturavam com os escravos no senado e aos apátridas ilegais - e só aos ilegais - estava destinada a fina tarefa de ensinar.

II

“SIM ao estado de emergência (67%), SIM à proibição de sair do concelho de residência (57%) e ao recolher obrigatório (67%) nos dois fins de semana prolongados de dezembro. E um SIM ainda mais rotundo a restrições que dificultem as viagens e reuniões familiares no Natal (71%) e no Ano Novo (78%). Os portugueses estão preparados para sacrificar o período de festas deste ano.Jornal de Notícias, 28 de Novembro de 2020, quarenta e cinco anos e três dias depois.”

III

Mas Jaume, para além da sua ficção, tinha também uma contemporaneidade. Vivia em tempos complicados: com doenças consagradas, medos em videovigilância, guerras sanitárias, repressão de liberdades (dependendo do horário e/ou da profissão) irracionalidades voluntárias, unanimismos em exaltação e principalmente, tempos onde toda a resistência sensorial era intolerada com direito a humilhação instantânea em espaço digital e bloqueio de acesso às melhores séries em streaming nas noites de sábado em prisão-domiciliária.

IV

“Vasco Pulido Valente escreveu como só poderia escrever alguém que gostasse intensamente de Portugal e dos seus “indígenas”. Distribuindo bordoadas a torto e a direito, num português depurado e requintado, V.P.V. combateu as manifestações do nosso atraso”. “V.P.V., como Eça, moía de pancada a mediocridade, o provincianismo e a autocomiseração nacionais.” Sérgio Sousa Pinto.

V

Murmurava Jaume, em São Sebastião de Mântua, entretanto transformada em sauna mista, que na sua utopia-cidade, todos as pessoas caminhavam (em linha torta) com uma pilha de vinte e dois livros à sua cabeça. Sempre que uma pessoa caía, os livros continuavam a pairar, à espera de nova cabeça. Ou não. Talvez isso fosse uma mentira de outras cidades imaginárias – não da de Jaume.  A utopia-cidade de Jaume, um espaço fragmentado de momentos que mal chegaram a existir, cumpria-se apenas nos delírios da nossa resistente personagem, imbuído da estranha missão de propagandear uma história - com agá grande - extraviada nos excessos dos tempos transformação digital.

VI

“Legou-nos o seu olhar inconfundível acerca do que somos, levou a vida que quis e depois morreu. Livre, até de sucessores. Um grande escritor não pode pedir muito mais da vida.”

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