07.12.2020 Interessa-me particularmente algum equilíbrio
I
Estranhos tempos
onde um equilibrado e um negacionista são obrigados a pertencer ao mesmo lado
da barricada. Esther era uma dessas pessoas que tentava, sempre que conseguia
(e nunca era fácil) transportar uma balança. Esther era um equilibrado, ou ainda
melhor, uma equilibrada: o que sendo mulher, lhe dava outras munições para a
guerra. Esther sabia, porque era uma pessoa informada, que o vírus existia e
que era tudo uma questão de sorte. Claro que Esther sabia bem de mais que a
sorte se procura (e que a sorte, se evita).
II
Mas se Esther sabia
- como já o precisámos de dizer - que o vírus existia, conhecia também coisas
curiosas como: o autoritarismo, a repressão das liberdades, o controle dos
movimentos, o medo irracional, um estranho unanimismo e uma tendência para a vigilância
digital. Mas o que irritava especialmente Esther era uma progressiva falta de tolerância
para aqueles que, como ela, se assumiam como equilibrados e priorizavam, sei
lá, coisas poéticas como: viver apaixonadamente.
III
Ester era portanto,
como já vimos: incómoda. Esther representava, naquela cidade, um certo realismo,
um meio-termo, a razoabilidade e a proporcionalidade. Havia quem dissesse, mas
eram poucos, que Esther personificava ainda o bom-senso, a moderação e –
imagine-se – a sabedoria. Coisas que apesar de tudo, naquela cidade, se combatiam
facilmente através da falta de rede.
IV
Disse-me uma vez
Esther, numa longa conversa que tivemos num vão de escada onde as paredes talvez
pudessem ter ainda ouvidos, que o que sentia mesmo falta era o teatro social.
Literalmente. Esther adorava ir ao Teatro. Chegava sozinha e saía sozinha. Também
via a peça (daí o Teatro), mas o que ela precisava – visceralmente dizia - era
daqueles percursos de entrada, de saída, de ida ao quarto de balho para retocar
a maquilhagem. Sim, Esther ainda usava maquilhagem (no início da peste) e sim
Esther vestia-se para ir ao Teatro: para ser comentada, copiada e
principalmente, invejada. Esther, gostava que olhassem para ela. Era a sua
forma de comunicar. Há quem goste de likes em redes sociais. Mas não, não era este
o caso. Esther gostava mesmo de equilíbrios e foyers de teatros – coisas, que
apesar de tudo, naquela cidade, se combatiam facilmente acertando o relógio.
V
E foi disso que
Esther ficou privada naqueles cinco anos de peste. Não foi instantâneo, não –
mas gradual. Primeiro lavram-lhe as mãos e taparam-lhe a boca. Depois
disseram-lhe o que fazer: ficar em casa, sozinha; subscrever três canais de
streaming; aprender a fazer bolos através do Youtube; encomendar livros sugeridos
por algoritmos; esperar; esperar; esperar; por uma vacina que veio, em saquetas,
às tranches, durante cinco anos, os mesmo que Esther ficou sem ir ao teatro social
- porque, convenhamos: ir ao teatro ao sábado de manhã era para Esther (como
para outros) uma comédia.
VI
Uma vez disse a
Esther – numa dessas conversas que se tem quando se espera, na fila, pela enésima
nona dose da vacina - que a mim, era a viagem que me fazia falta. Não uma
viagem qualquer, nem uma para particularmente longe. Uma viagem sozinho, até ao
fim da rua, fora das horas que me deixam. Disse a Esther que, como ela bem sabia, até
mo deixavam fazer: mas a cidade já não era a mesma. Claro que, mudar uma cidade
é algo que naquela cidade era particularmente elementar de fazer: alterou-se
apenas a forma de consumo.
VII
Esther, a equilibrada,
que vivia na mesma cidade que eu - confirmou. Naqueles cinco anos muita coisas
mudou. Mas isso, eram outras histórias que não se podiam ter nas filas das
vacinas, com os drones (agora silenciosos) a olharem para nós da
meia-distância. Nem essas, nem a história que Esther me relembrou: quando era
dada comida aos primeiros judeus, famintos, que saiam vivos dos campos de concentração,
estes: morriam. Mas mais vale morrer excitado e livres do que…


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