15.12.2020 Interessa-me particularmente a paranoia XIII
I
Quando chove não
é necessária a lei. A natureza é uma lei. Diz a lei natural (se tal houvesse, e
oxalá não haja) que sobreviver é mais preciso do que viver. Mas lá está: até a
lei natural foi escrita. Dizem-me que quando chove, as casas continuam ilegais.
Um amigo é um inimigo: pelo menos até dia vinte e quatro. Podes chamar amigo a
quem te obriga a mascarar? Sim, porque ele quer salvar um outro. Definição de
amigo: aquele que tenta salvar um outro. Como? Aplicando cautela, irreflexão, incerteza
e fé. Definição de amigo: aquele que deseja aumentar as probabilidades da
sorte. É uma sorte escapar à peste. É uma sorte ter um amigo. Definição de sorte:
ter um amigo e/ou escapar à peste.
II
Já só se pensa
no dia vinte e quatro. Troca-se um ano por um dia, dia e meio e algumas
sobremesas. Passado o repasto sagrado, regressamos à ordem do-dia: a espera
entretida. Contam-se pelos dedos das mãos os que têm fé na ciência.
Publicamente todos têm fé na ciência. Em privado, só fé ou só ciência. Pelo
meio, há poucos a acreditar na sorte. Publicamente todos sonham por autoridade.
Em privado, todos os dias são dias vinte e quatro. Cometer ilegalidades (e
outras faltas éticas) é o entretém oficial em dias de peste. Quem nunca sonhou
em ser iraniano? A sorte de poder contornar a fé.
III
O vinho só pode
ser comprado até às dezanove e cinquenta e nove. As filas do supermercado
desaparecem às vinte horas. Diz-se que são precisos noventa dias para mudar um
hábito. Já lá vão dez meses. As filas dos correios às doze e vinte têm mais
gente que a fila do supermercado às dezanove e cinquenta e dois. Consumir sim.
Já tomámos a vacina do consumo. Há que ter alegrias em tempos de preste.
Definição de alegria: aquele momento do unboxing. Definição de entusiasmo: um
ecrã com ligação à minha conta bancária. Definição de entretenimento: tudo o
que faça esquecer as transformações dos hábitos e/ou da sorte.
IV
Ontem passei a
ponte. Meia hora para passar e mais dez minutos para chegar ao destino. Não
estava lá ninguém e eram três e meia. Dizem-me que estão todos em casa. Sempre
estiveram, mesmo quando não havia peste. Quando não havia peste, já havia essa
coisa das novas-tecnologias e os jovens (e os menos jovens) sonhavam com uma
universidade em-linha. Quando não havia peste, alguns filmes já estreavam em
streaming e algumas lojas já estavam vazias. Dizem-me que depois do dia vinte e
quatro já ninguém aguenta. Mas também se diz que são precisos noventa dias para
mudar um hábito. E já lá vão dez meses desta sorte.
V
Hoje não chove.
Quando não chove não é preciso lei, só tempo: e já lá vão dez meses. Dia vinte
e quatro: uma nova meta, e depois? Dia trinta e um é uma meta ilegal. Dia trinta
e um é afinal uma meta. Definição de ilegal: dia trinta e um e/ou fintar a
sorte.
VI
Nota para baralhar
o mundo: “O sopro da vida é o mesmo para todos” e/ou a culpa é da sorte.
Um entusiasmo antigo: a ilegalidade. Caros concidadãos, as leis são estas, os
buracos na lei são estes, também temos sugestões e promessas e muitos medos.
Definição de entretenimento: dia vinte e quatro, dia trinta e um, todos os
dias.
VII
Definição de
medo: pensar que se desaproveita a vida à custa da cautela, da irreflexão, da incerteza
e da fé, do outro. Dicas para a vida e/ou a sorte: “Assegura-te
constantemente um tal retiro e renova-te nele.”


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