15.12.2020 Interessa-me particularmente a cópia

 


 

I

O chega diverte-me. A mim, à comunicação social assoberbada e às redes eruditas, à classe política com pê grande, à classe política com cê grande, e até ao próprio chega. O chega é um amuse-bouche comprado-feito no Lidl. Um entretém esvaziado enquanto não há mais nada e a fome é pouca. Não substitui sequer uma entrada, mas vai bem com álcool (e fósforos). O chega é divertido. É saco-de-pancada. Recebe, mas também dá: bate com estrondo, mas sem dor. O chega é um cliché (e todos os clichés): cão que lada e não morde. É ignorante e aparatoso, é boçal e copia mal: uma espécie de sopa deslavada de ingredientes rústicos.

II

Para vencer o chega é fácil: basta melhorar as condições de vida das gentes, promover uma economia à prova de crises, uma saúde de mortes inquestionáveis e uma justiça acima de qualquer suspeita de café. Fácil então. Em cada descontente um amigo, bem chegado.

III

O chega é uma moda, o descontentamento não (nem a CMTV). Um partido é sempre um saco de gatos (e os gatos perdoam-me, porque gostam de se divertir). Ao chega chegam, para além dos honrados descontentes, os gatos mais vadios: xenófobos, oportunistas, racistas, arrivistas, machistas, castradores, misóginos, nacionalistas, vários empresários por conta própria, os polícias com mais cara-de-poucos-amigos, gente pouco instruída, gente muito instruída (mas nos livros errados), mulheres submissas, minorias enganadas, homens submissos, maiorias sugestionadas, entre outras estirpes de in-sucesso da nossa praça. Quando a moda do chega acabar, os gatos vadios por cá continuarão (mais ou menos descontentes) nas frases-feitas que ouvimos nos táxis, nos restaurantes Michelin e nas Universidades.

IV

Mas se um tipo de um-por-cento diverte. Um tipo de dez-por-cento diverte muito mais. Um tipo de um-por-cento tem um saco de gatos fechado com um laço cor-de-rosa. Um tipo de dez-por-cento tem de abrir o saco. Quem deixou os gatos sair? O tipo de um-por-cento quer fechar o saco, o saco não fecha, o saco rompe-se, acaba-se com o saco e com o tipo de um-por-cento e a sua coelha fofinha.

V

Se o tipo de um-por-cento acabar, lá temos nós de voltar a chamar fascistas aos meninos de pólo que usam missal e boçais aos camaradas de mãos oleadas. O jeito que dá um saco de gatos tão divertido. Que bom ter, como os nossos antepassados, um canto escuro à lareira para derramar toda a porcaria indesejada no final da refeição.

VI

O chega - porque me diverte - existe por minha culpa, minha tão grande culpa e de todos nós, os falhados da superioridade moral da segunda metade do século passado, que pensavam que era suficiente dar a ler o Orwell certo às mentes erradas. Mas não chega. A educação nunca é suficiente.

VII

O presente texto foi escrito à maneira de (Sérgio Sousa Pinto a tentar copiar o) Vasco Pulido Valente. Quaisquer responsabilidades e ataques de snobismo são de exclusividade literária (ou talvez não). Não há cronista que se preze que não fale sobre o chega. A copiar, que se (tente) copie bem.



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