21.12.2020 Interessa-me particularmente a paranoia XIV
Nos jornais,
os duelos são pela vida contra a vida. Biologia asceta versus sentir elementar
pré-hedonista. De um lado: quem quer um coração a bater; do outro: quem equaciona
motivos para o coração bater. Ai de quem arrisque sentar-se à bancada de apoiantes do
segundo. Ao coração cabe (só) bater. Ao motivo, cabe (também) a culpa.
II
As famílias
mentem orgulhosas pele televisão. Caro transeunte – pergunta o jornalista –
então e esse Natal? Duas mesas, em salas diferente. As crianças ficam no quarto
da playstation. A avó, sempre mascarada, arredada para o canto ao pé da lareira (como na escola, quando se portava mal).
Na cozinha, tira-se à sorte para a penitente de serviço (sempre mulher, pois com
certeza) que ficará sozinha responsável por todo o sacro banquete. Será tudo
pelo zoom. As famílias em hipocrisia na
televisão. Este Natal, na casa do transeunte, são só eles, o núcleo, a bolha,
o elemento mínimo. Quantas pessoas fazem uma família? Pode uma família ter (apenas)
um elemento. Eu posso ser a minha família ou sou apenas eu?
III
José descansa. Está
velho. Sentado num espartano banco corrido – espera. Maria não descansa (as mães
descansam?). É nova. Aquece o menino numa braseira. Lá fora um jardim esvaziado
de folia. A austeridade (oficial) toma conta dos natais em tempos de peste. A hipocrisia
(real) toma conta das famílias entrevistadas pela televisão. Caro transeunte - pergunta
o jornalista – vai estar mascarado na noite de Natal?
IV
Um ano à procura
de uma vacina. Chega a Vacina. Uma nova peste – ou pelo menos uma variante da
mesma. Agora esta é que é! Quando o medo marca férias, nova sorte. Mortos e
feridos às dúzias por família (mais ou menos hipócrita, mais ou menos
numerosa). E mais notícias parvas? O vírus espalha-se por sandes de queijo e
presunto que passam acidentalmente (não foram comidas a tempo) a fronteira em direcção ao coração da União Europeia. Mas
eu não sabia que a Velha Europa tinha coração – e no entanto, se não tiver,
quem o terá?
IV
Parece que o Miguel Esteves Cardoso tem uma boa definição de conservador. Um
conservador é como uma criança que faz birra para não ir tomar banho, mas uma
vez na banheira, faz birra para não sair dela. Bons tempos para se ser um conservador. Um conservador pode sempre conservar o progresso da geração anterior.
Coisas a conservar para o ano que vem: os corredores da universidade,
as mesas do café, a laicidade, o capitalismo original, a autoria criativa individual e a viagem despreocupada. Coisas a resistir para o ano que vem: a digitalização
de tudo-e-mais-alguma-coisa e o medo. Só. E não é pouco? Não, o resto ajusta-se.
V
Caro transeunte
hipócrita, minta-me hoje aqui em directo para a televisão. Tem medo? Está
paranoico? É negacionista? Vai tomar a vacina? Costuma beijar idosos? E novos?
Quantas vezes muda de máscara por semana? Quantas vezes lava as mãos por dia?
Quantas vezes mente em directo para a televisão? Quantas vezes mente a si
próprio?

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